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Karl Marx ✆ Shanghart
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Emmanuel Nakamura |
Em sua crítica de 1843, Marx encontrou na Filosofia do Direito de Hegel
(1821) uma contradição na repolitização da sociedade civil burguesa. Os
interesses das instituições sociais só podem se realizar de maneira formal como
assunto geral do Estado. Deste modo, tal processo de repolitização acaba
repondo a separação entre sociedade civil burguesa e Estado. Meu objetivo é
mostrar como, nesse debate com Hegel, Marx já apresenta um conceito de
contradição que aponta para pressuposições históricas. Essa relação entre
apresentação lógicosistemática e consideração histórica é fundamental para
compreender posteriormente o programa da crítica à Economia Política.
I
Marx encontrou na apresentação hegeliana do poder
legislativo nas “Linhas fundamentais da
Filosofia do Direito” (1821) uma aporia na repolitização da sociedade civil
burguesa. Para ele, as instituições sociais não podem aparecer imediatamente em
seu significado político, pois isso significaria um retorno à Idade Média
(MARX, 1982a, p. 79). As instituições sociais enquanto tal não têm significado
político e só podem então ganhar “eficácia e significação política” quando elas
renunciam aos seus interesses para que esses se realizem apenas de maneira
puramente “formal” como “assunto geral” do Estado. Por isso, o burguês pode ser
cidadão do Estado apenas como indivíduo, ou seja, enquanto ele está em “contradição com estas únicas comunidades
aí-presentes” (ibidem, p. 86-7).
Tal crítica parte de um critério normativo: a teoria do ser
genérico de Feuerbach. Quando Marx afirma que, na filosofia hegeliana do
direito, “a propriedade privada tornou-se o sujeito da vontade” e que “a
vontade nada mais é que o mero predicado da propriedade privada” (MARX, 1982a,
p. 110), ele se apoia no argumento de Feuerbach de que Hegel fez uma inversão
entre sujeito e predicado. Mesmo quando Marx afirma partir da efetividade
empírica, ele ainda opera com o argumento feuerbachiano da inversão: “A lógica
não serve como prova do Estado, mas o Estado como prova da lógica” (ibidem, p.
18).
No entanto, ao procurar mostrar o fundamento da inversão
especulativa através da efetividade empírica, Marx formulou pela primeira vez o
seu “primado da práxis” (ARNDT, 1985, p. 29). Em oposição à monarquia
constitucional, Marx defende que a democracia é a forma de “autodeterminação do
povo”. Ele encontra aqui “o homem efetivo,
o povo efetivo”1 (MARX, 1982a, p. 30-1). Através da democracia, a constituição
aparece como um “produto livre do homem”. Entretanto, ela é defendida por Marx
como uma afirmação, sem comprovação, contra a monarquia e, nesse sentido, ela
aparece simplesmente como uma imediaticidade não-mediada2.
No entanto, Marx não parece se apoiar apenas na crítica da
religião de Feuerbach, mas também em uma análise do processo histórico de
surgimento das modernas constituições europeias (YILDIZ, 2008, p. 117). Através
dessa análise, ele pôde então afirmar que, na Alemanha, o que estava em jogo
não era a “suspensão” dos problemas sócio-políticos, como na Inglaterra e na
França, mas sim a “continuação” até as últimas consequências e não a sua
“solução”, mas sim a “colisão” (MARX, 1982b, p. 174). Tal diagnóstico da
situação na Alemanha se apoiava em uma análise histórica dos Estados europeus.
Minha hipótese é que não apenas a referência à crítica
feuerbachiana da religião, mas antes a consideração histórica nos permite
compreender a crítica de Marx de 1843 à representação política na “Filosofia do Direito” (1821) de Hegel.
Meu objetivo é mostrar como, nesse debate com Hegel, Marx já apresenta um
conceito de contradição que aponta para pressuposições históricas. Essa relação
entre apresentação lógico-sistemática e consideração histórica é fundamental
para compreender o programa da crítica à Economia Política.
II
De acordo com o comentário de Riedel (1982, p. 116-139), em “Die Rezeption von Nationalökonomie”,
Hegel só formulou claramente na “Filosofia
do Direito” de 1821 a separação moderna entre sociedade civil burguesa e
Estado. Essa separação foi um resultado das revoluções modernas e produziu a
despolitização da sociedade civil burguesa e a descentralização do poder
político do Estado através do deslocamento do seu centro de gravidade para a
economia (RIEDEL, 1982, p. 160). O princípio dos Estados modernos consiste, por
um lado, em “deixar o princípio da subjetividade completar-se até o extremo
autônomo da particularidade pessoal”, ou seja, a sociedade civil burguesa e o
Estado são esferas separadas que ganham autonomia. Por outro lado, esse
princípio da moderna subjetividade é, ao mesmo tempo, reconduzido “à unidade
substancial” do Estado3 (HEGEL, 1986, § 260, p. 407). Para Hegel, é importante
a “Ideia de liberdade” como resultado de uma visão de mundo histórica da
consciência moderna. Segundo ILTING (2006, p. 105), direito, moralidade e
eticidade não são mais um “sistema normativo primário de ordenações da vida
humana em conjunto, como era na filosofia política anterior a ele”, mas sim,
antes de tudo, “formas de visão de mundo” de um “desenvolvimento histórico de
uma consciência”.
Para Hegel (1986, § 182 Adendo), a “criação da sociedade civil pertence ao mundo moderno”. Nela, a
“unidade imediata da família desagregou-se numa multiplicidade” e o “[elemento]
ético está aqui perdido nos seus extremos”. Na segunda seção da “Filosofia do Direito”, “A sociedade
civil burguesa”, é apresentado o significado especificamente moderno da
contradição entre particularidade e universalidade: “Ao mesmo tempo em que na
sociedade civil a particularidade e a universalidade estão dissociadas, estão
ambas, contudo, reciprocamente ligadas e condicionadas” (§ 184 Adendo). Por um
lado, a particularidade ganha direito à autonomia, enquanto os indivíduos são
deixados livres para perseguir os seus próprios
interesses. O Estado não é uma unidade ética imediata e não pode excluir
o “direito da subjetividade” (§ 185
Adendo). Por outro lado, a universalidade se comprova tanto como o “fundamento e a forma necessária da
particularidade” como também a “potência sobre ela e como o seu fim último”
(§ 184), pois ela aparece como uma articulação de diferentes interesses em que
cada indivíduo é meio para a satisfação das carências do outro, mas essa
mediação se apresenta apenas como uma universalidade formal, pois ela não se
encontra na consciência dos membros da sociedade civil (§ 187).
Essa mediação não permanece formal, pois o trabalho forma um
caminho imanente da subjetividade livre em direção à universalidade. Através do
trabalho da formação, a universalidade ganha “o conteúdo que a preenche e a sua
autodeterminação infinita” (§ 187). Trata-se de um sistema de dependência e
oposição do trabalho e de satisfação das carências em que “o egoísmo subjetivo se inverte na contribuição para a satisfação das
carências de todos os outros” e o particular e o universal são mediados
através de um “movimento dialético” (§ 199). Para Hegel, o universal e o
objetivo do trabalho estão “na abstração,
a qual efetua a especificação dos meios e das carências e com isso igualmente
especifica a produção e produz a divisão dos trabalhos” (§ 198). Em
consequência disso, surge com a divisão do trabalho uma correspondente formação
teórica e prática nos diferentes estamentos (§ 201).
Para Hegel, os estamentos são, portanto, uma “divisão do todo” (§ 206 Anotação). A
efetividade do indivíduo e, por conseguinte, sua particularidade determinada,
está no pertencimento a um estamento, onde tanto a disposição de ânimo ética do
indivíduo é formada, como também suas carências são restringidas (§ 207): “Um homem sem estamento é mera pessoa
privada e não está numa universalidade efetiva” (§ 207 Adendo).
Essa proteção diante da contingência da existência na
sociedade civil burguesa é completada pelas corporações. Através delas, “o
elemento em si igual na particularidade vem à existência na associação
cooperativa enquanto elemento comum” (§ 251). Segundo Hegel, a corporação tem o
direito de cuidar dos seus próprios interesses (§ 252). Nela, a “ajuda que a
pobreza recebe perde o seu caráter contingente” e a atividade consciente é
formada para um fim comum (§ 254). Por isso, a corporação é a “eticização do
empreendimento isolado” (§ 255 Adendo) e constitui, ao lado da família, a “segunda raiz ética do Estado” (§ 255).
Através dessas instituições da sociedade civil burguesa, o
“universal é, ao mesmo tempo, a causa de cada um, enquanto particular” e a
sociedade civil burguesa aparece como ética (§ 265 Adendo). Por isso, as
instituições sociais são a “base sólida do Estado” dentro da sociedade civil
burguesa e a base “da confiança do indivíduo no Estado e da sua disposição de
ânimo a favor dele”, sendo por isso “os pilares da liberdade pública” (§ 265).
Esta disposição de ânimo é a confiança de que o “meu interesse substancial e particular
está conservado e contido no interesse e no fim de um outro (aqui, do Estado)
enquanto esse está em relação comigo enquanto indivíduo singular”. Neste
sentido, o Estado é um imediato que não é nenhum um outro para o indivíduo (§
256 Anotação; § 268).
A constituição política tem, portanto, uma significação
abrangente, como “a organização do Estado e o processo da sua vida orgânica em relação a si mesmo, relação na qual ele
diferencia os seus momentos no interior de si mesmo”, e um restrito, como constituição
enquanto tal, como poder legislativo, que é por ele desdobrada, ganhando
subsistência (§ 271). Por isso, ela não é algo meramente feito e sim o
“trabalho de séculos, a ideia e a consciência do racional, tanto quanto essa
consciência está desenvolvida num povo” (§ 274 Adendo). A constituição é,
portanto, a “solo firme e vigente” sob o qual está o poder legislativo (§ 298
Adendo). Este, por sua vez, pressupõe a constituição e é, ao mesmo tempo, “uma
parte da constituição” (§ 298).
A constituição política é o “trabalho de séculos”. Daí
pode-se interpretar que ela é uma pressuposição histórica sob a qual está o
poder legislativo. Neste sentido, Marx leu Hegel corretamente: Hegel pressupõe
o Estado existente (MARX, 1982a, p. 58). Enquanto pressuposição histórica, a
constituição política é tomada como uma dinâmica histórica que condiciona
estruturalmente a formação social, dentro da apresentação da passagem da
sociedade civil burguesa ao Estado considerado como “Ideia de liberdade”.
Contudo, enquanto pressuposição, ela está fora da determinação direta do poder
legislativo: que o poder legislativo seja “apenas poder legislativo dentro da
constituição” significa apenas que ele pode mudar a constituição apenas sobre
determinadas condições históricas, que estão fora da determinação direta do
poder legislativo. Por isso, a constituição obtém o seu desenvolvimento
ulterior “no aperfeiçoamento contínuo das leis e no caráter progressivo dos
assuntos universais do governo” (HEGEL, 1986, § 298). Segundo Marx, permanece
aqui uma “oposição” e uma “colisão” entre a constituição e o poder legislativo.
Essa colisão foi por ele compreendida como uma “contradição”, cuja forma de
desenvolvimento e de resolução foram concebidas por Hegel como mudança gradual
da constituição4 (MARX, 1982a, p. 59-60).
Por um lado, Hegel considerou de maneira híbrida a sociedade
civil burguesa ao tomar como pressuposições históricas a Revolução Francesa, a
moderna economia inglesa5 e a realidade alemã6. Por outro lado, Hegel foi o
mais consequente intérprete do Estado moderno em sua separação completa da
sociedade civil burguesa7. Por isso, o poder legislativo foi por ele
desenvolvido no sentido moderno. A sociedade civil burguesa e o Estado
constituem, portanto, dois extremos completamente separados um do outro, mas
essa separação é efetiva no Estado moderno.
A mediação dos extremos é apresentada por Hegel através dos
estamentos da sociedade civil burguesa e de sua representação política no poder
legislativo. Ela é uma mediação social do político através da qual o Estado não
é nem um poder despótico e nem os interesses da sociedade civil burguesa se
isolariam (HEGEL, 1986, § 302), pois as instituições sociais atingiriam no
poder legislativo uma “significação e uma
atuação políticas” (§ 303).
A crítica de Marx consiste em apresentar a mediação como
existência da contradição e persistir na diferença dos extremos (cf. ARNDT,
1985, p. 262): “Extremos efetivos não podem ser mediados, justamente porque
eles são extremos efetivos. Eles não precisam de nenhuma mediação, pois eles
são essências contrapostas” (MARX, 1982a, p. 97). Por isso, Marx insiste no
aspecto formal da representação política na “Filosofia do Direito”. Para Hegel
(1986, § 301), o “momento da liberdade
formal subjetiva” vem à existência na representação estamental. Para Marx
(1982a, p. 80), essa representação política é um mero “formalismo político”. A
sociedade civil burguesa é “em si e por si sem significação e eficácia
políticas” (ibidem, p. 85). A instituição social tem, por isso, de renunciar a
sua existência como estamento privado para atingir a “significação e eficácia
políticas”. Por conseguinte, o burguês efetivo se encontra em uma “dupla
organização” – na organização social e na organização estatal. Para se
comportar como cidadão efetivo do Estado, o burguês tem em sua individualidade
de se retirar da organização social, pois “a única existência que ele encontra
para a sua atuação como cidadão do Estado é a sua individualidade pura e nua”, pois a existência do Estado está
completa sem ele e a sua existência na sociedade civil burguesa está também
completa sem o Estado. Assim, o indivíduo só pode ser cidadão do Estado quando
está “em contradição com essas únicas
comunidades aí-presentes” da
sociedade civil burguesa. Neste sentido, o poder legislativo repõe a atomização
dos indivíduos na sociedade civil burguesa ao invés de repolitizar esta. A vida
burguesa e política permanecem separadas uma da outra.
O conceito marxiano de contradição parte de pressuposições
históricas que são diferentes das de Hegel. Este tem como ponto de partida
histórico uma sociedade civil burguesa em que os indivíduos se articulam em
corporações, comunas e associações cooperativas. Assim, eles mantêm uma conexão
política (HEGEL, 1986, § 308). Marx (1982a, p. 121) pressupõe uma sociedade
civil burguesa em que os indivíduos estão atomizados e só se reúnem “por um
instante sem sustentação ulterior, para um ato isolado e temporário” – o voto.
Sua pressuposição é, portanto, a transformação dos estamentos políticos em
estamentos sociais realizada pela Revolução Francesa, de modo que a vida
política não tem mais significado na sociedade civil. Daí segue que o elemento
democrático é, nos tempos modernos, uma “abstração do Estado apenas político” e
uma “abstração da sociedade civil burguesa de si mesma” (ibidem, p. 123).
Portanto, a contradição do poder legislativo, impulsionada à manifestação, é a
contradição do poder legislativo e da sociedade civil burguesa consigo mesma (ibidem,
p. 100).
Desse modo, a crítica da constituição do Estado atual deve
mostrar não apenas a contradição como existente, mas também esclarecer a sua
“necessidade” e conceituar a sua “gênese”. O conceituar consiste apenas em
apreender “a lógica própria do próprio objeto” (ibidem, p. 101). Segundo Marx,
a contradição tem uma forma histórica específica. Esta forma é a constituição
representativa na França8 (MARX, 1982a, p. 130). É uma aspiração efetiva da
sociedade civil burguesa dar um ser-aí político para si mesma (ibidem, p. 128),
mas a exigência de que cada carência social seja através do Estado reconhecida
como política em seu sentido social toma, no Estado político, um sentido
formal, que cai fora do conteúdo efetivamente social. Isso não é nenhuma
abstração dos franceses, mas sim uma consequência da existência do Estado
moderno efetivo (ibidem, p. 130). A contradição se situa, aqui, dentro do
sistema do Estado político efetivo, sob a pressuposição histórica da separação
completa entre o Estado e a sociedade civil burguesa impolítica. A eleição é,
entretanto, a relação imediata da sociedade civil burguesa com o Estado
político (ibidem, p. 130). A constituição representativa é um progresso, pois
ela é a contradição declarada e a expressão consequente da situação moderna do
Estado. A eleição – enquanto relação existente da sociedade civil burguesa com
o Estado – é a forma específica de movimento da contradição da constituição
representativa. A constituição representativa é finita porque ela é em si
contraditória: a relação contraditória da sociedade civil burguesa com o Estado
é, ao mesmo tempo, a sua formação política – sua repolitização; através da
eleição irrestrita, a sociedade civil burguesa conclui a abstração de si mesma
e essa conclusão é, ao mesmo tempo, a exigência de dissolução do Estado
político e da sociedade civil burguesa9. Isso significa que as condições de
existência da contradição são dissolvidas10.
Marx está certo quando diz que, segundo a concepção de
Hegel, as oposições assumem na “Filosofia
do Direito” também uma “figura material” (ibidem, p. 107). Apesar disso,
Hegel parte de outras pressuposições históricas, ou melhor, de uma sociedade
civil burguesa em que os indivíduos estariam “articulados em corporações,
comunas e associações cooperativas” e “dessa maneira adquirem uma conexão
política”, ou seja, “o membro do Estado é membro de um tal estamento” (HEGEL,
1986, § 308). Através dos estamentos, a sociedade civil burguesa e o Estado,
enquanto extremos constituídos, estariam mediados e a oposição é reduzida a uma
aparência (§ 302 Anotação). Isso ocorre porque o Estado, considerado como Ideia
de liberdade, dá aos estamentos uma significação moderna. Por isso, a
significação política dos estamentos tem de ser outra daquela da sociedade
civil11.
Na justificação do morgadio se torna claro que Hegel procura
Na justificação do morgadio se torna claro que Hegel procura apresentar,
através do elemento da tradição, tanto uma mediação social do político como
também uma limitação para a “extravagância” da sociedade civil burguesa12 (HEGEL,
1986, § 185). Através do estamento dos proprietários fundiários vem à
existência a mediação entre os extremos da universalidade empírica da sociedade
civil burguesa e o poder do príncipe. Esse estamento está em condições de
constituir essa significação política, pois, por um lado, ele tem a
imediaticidade ética da vida familiar e a determinação natural do poder do
príncipe (§ 305); por outro lado, ele compartilha das mesmas carências e
direitos da sociedade civil burguesa. Por isso, ele se torna, ao mesmo tempo, o
sustentáculo do trono e da sociedade (§ 307). Sua posição e significação
política consiste que o patrimônio desse estamento é “independente tanto do
patrimônio do Estado como da insegurança da indústria, da busca compulsiva do
ganho e da mutabilidade da posse em geral” (§ 306). O morgadio é justificado
apenas porque ele pode aumentar a segurança e a estabilidade desse estamento,
já que o Estado não pode “contar com a mera possibilidade da disposição de
ânimo, porém com algo necessário” (§ 306 Adendo).
Para
Marx, a justificação de Hegel do morgadio é um “sincretismo”: “Hegel quer o
sistema estamental da Idade Média mas no sentido moderno do poder legislativo”.
A crítica de Marx tem uma dupla significação: por um lado, ele constata uma
“acomodação” de Hegel (MARX, 1982a, p. 105); por outro lado, ele descobre que a
propriedade privada foi apresentada por Hegel na “mais alta autonomia e
precisão de seu desenvolvimento”, pois o morgadio é a propriedade privada que
se libertou de todas as amarras sociais e éticas. Portanto, quando o Estado dá
ao morgadio uma significação moderna, ele conduz a propriedade privada a sua “autonomização
abstrata”13 (MARX, 1982a, p. 109).
III
Da crítica de Marx à “Filosofia
do Direito” de Hegel é possível concluir que (1) o conceito marxiano de
contradição parte de pressuposições históricas diferentes das de Hegel:
enquanto Marx pressupõe uma sociedade em que os indivíduos estão atomizados,
Hegel pressupõe uma em que esses estão articulados em estamentos. Daí segue que
(2) os extremos, segundo Marx, não podem ser mediados e, para Hegel, os
estamentos podem desempenhar o papel da mediação. Nesta perseverança da
diferença da contradição na dialética de Marx é possível apreender que (3)
Hegel e Marx têm diferentes procedimentos para tratar as pressuposições
históricas: as pressuposições históricas assumem uma nova forma na dialética
hegeliana, por isso a Ideia de Estado está em condições de dar aos estamentos uma
significação política moderna; em oposição a isso, as pressuposições reais são
apenas reproduzidas pela dialética marxiana. A partir desses diferentes
tratamentos da história segue que, (4) em relação às formas de movimento da
contradição, as concepções de Hegel e Marx diferem uma da outra: (a) na
filosofia hegeliana do direito, a Ideia de liberdade constitui a forma de
desenvolvimento da contradição na qual a constituição é aperfeiçoada através do
poder legislativo. Portanto, contradição é aqui entendida como “colisão do
finito”. Essa colisão entre a constituição historicamente desenvolvida e o
poder legislativo é limitada porque ela aponta para a formação histórica do
Estado. Esta, por sua vez, é subordinada à relação dos Estados entre si. Nessa
relação, a autonomia do Estado é exposta à contingência exterior. Trata-se aqui
de uma “dialética da finitude”, através da qual o irrestrito “Espírito do
mundo” se produz (cf. Hegel, 1986, § 30, p. 340). A contradição contem na “Filosofia do Direito” uma forma de
desenvolvimento que é condicionada pela Ideia de liberdade. Essa forma aponta
para uma “nova instância da filosofia prática” – a história (RIEDEL, 1982, p.
219). Esta, por um lado, não abole a contradição, mas é a esfera de legitimação
de cada liberdade que tem sua efetividade na constituição do Estado do mundo
moderno14; (b) Marx, por sua vez, concebe a forma de movimento da contradição
como dada através de uma condição de existência que é historicamente
pressuposta (ARNDT, 1985, p. 261). O desenvolvimento da contradição também
aponta para uma esfera da história, ou melhor, para a condição de existência da
contradição. A história tem aqui como ponto de vista a contradição entre a
moderna constituição representativa e a dissolução consumada da identidade
entre os estamentos políticos e sociais. A contradição é a “contradição do
Estado político, portanto, também da sociedade civil burguesa consigo mesma”
(Marx, 1982a, p. 100, grifo meu). Por isso, trata-se aqui 95 também de uma dialética
da finitude, pois a contradição aponta para a finitude do Estado político
efetivo e da sociedade civil burguesa efetiva, já que a eleição – enquanto a
relação efetiva da sociedade civil burguesa com o Estado político – “forma o
principal interesse político da sociedade civil burguesa efetiva” (ibidem, p. 130).
A aspiração pela eleição irrestrita é a aspiração da sociedade civil burguesa
para se transformar em sociedade política (ibidem, p. 128). Por isso, a eleição
irrestrita é, ao mesmo tempo, enquanto a abstração completa da sociedade civil
burguesa de si mesma, a “suspensão da abstração”, isto é, a exigência de
dissolução do Estado político e da sociedade civil burguesa (ibidem, p. 130).
Através da indicação de um campo histórico, a dialética se abre para uma outra
instância, a da práxis política15 – aqui, a reforma política enquanto ponto de
partida para uma democracia que se radicaliza. Esta alusão a um campo de
atuação política permanece aqui vaga, pois, por um lado, a situação histórica
no começo dos anos 1840 não se deixava especificar16; por outro lado, a
dialética marxiana ainda não podia indicar onde especificamente a consideração
histórica tem de entrar em seu método e em que lugar o poder se estabelece e é
atacável.
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Notas
1 Em setembro de 1843, Marx escreveu para Arnold Ruge: “Todo nosso
fim não pode consistir em nada mais, como também é o caso na crítica da
religião de Feuerbach, que trazer as questões religiosas e políticas para a
forma autoconsciente e humana” (MARX, 1975a, p. 56).
2 Para Theunissen (1978, p. 485), Marx acredita que: “(...) o
indivíduo humano só pode se realizar quando não assumir nada em sua
autorrelação que não seja ele mesmo. De acordo com seu critério, cada autorrelação
mediada tem de ser desmascarada enquanto relação estranha que se aliena. Sob a
orientação da norma de uma tal imediaticidade se baseia toda a crítica da
religião, tomada de Feuerbach de maneira totalmente irrefletida e que depois
ele não reivindica ao superar a imediaticidade do positivismo ingênuo de
Feuerbach”.
3 Para Riedel (1982, p. 138) fica claro na “Filosofia do Direito”
que “o princípio do Estado moderno é poder suportar a oposição entre o bourgeois
e o citoyen, de modo que ele mesmo a produz e a impulsiona até o seu
cume dentro do pensamento como na efetividade”.
4 Por isso, a contradição pode ser caracterizada na “Filosofia do
Direito” como “colisão do finito”: “A imediaticidade refletida do absoluto é em
certa medida a forma de desenvolvimento constituída metafisicamente, na qual os
contrapostos reais podem se mover. (...) Sobre essas pressuposições, a
efetividade do direito se apresenta como aquela da luta pelo direito, cujo
conteúdo e forma são determinados de maneira finita” (ARNDT, 1995, p. 91).
5 Cf. HEGEL, 1986, § 189 Anotação: “É uma das ciências que surgiram
na época moderna como seu terreno”. Cf. também § 189 Adendo: A Economia
Política é “uma ciência que honra ao pensamento, porque ela encontra as leis
para uma massa de contingências”.
6 Cf. RIEDEL, 1982, p. 186-7.
7 Cf. MARX, 1982a, p. 176.
8 Cf. KURT, 1975, p. 260-1.
9 Cf. MARX,
1982a, p. 130: “Somente a partir do direito irrestrito tanto de escolher
como de ser eleito, a sociedade civil burguesa se alça efetivamente à abstração
de si mesma, ao ser-aí político enquanto seu ser-aí verdadeiro,
universal e essencial. Mas a conclusão dessa abstração é, ao mesmo tempo, a
suspensão da abstração. Ao pôr o seu ser-aí político como verdadeiro [ser-aí
político], a sociedade civil burguesa pôs, além disso, o seu ser-aí burguês
como uma diferença inessencial em relação ao seu ser-aí político; e com
isso cai a separação, o seu outro, o seu contrário. A reforma eleitoral é,
portanto, dentro do Estado político abstrato, a exigência de sua dissolução e
igualmente a exigência de dissolução da sociedade civil burguesa”.
10 Na democracia
não há nenhuma determinidade diferente de outro conteúdo, pois a própria
constituição aparece “apenas como uma determinação, ou melhor, como
autodeterminação do povo”, ou seja, não há uma significação dupla entre a vida
social e política. Isso significa, por conseguinte, a dissolução dos extremos,
ou melhor, das condições de existência da contradição: “Os novos franceses
compreenderam que o Estado político perece na verdadeira democracia.
Isso é certo na medida em que ele como Estado político, como constituição, não
vale mais para o todo” (ibidem, p. 30-2).
11 Em oposição à crítica de Marx, não seria nenhum problema, segundo
a concepção de Hegel, que o Estado desse ao estamento privado “uma significação
política, isto é, uma outra significação, enquanto sua significação efetiva”
(MARX, 1982a, p. 77).
12 “Ao articular
conceitualmente o processo histórico-político decisivo da modernidade – a
separação da sociedade do Estado e a relação recíproca entre tradição e
revolução –, ele torna possível pensar a figura moderna da sociedade civil
burguesa e, ao mesmo tempo, limitar o seu poder substancial através de
estruturas antigas” (RIEDEL, 1982, p. 169).
13 Essa análise aponta a meu ver para a relação moderna entre Estado
e propriedade privada capitalista. Cf. Henry (1976, p. 65): “C’est alors le
rapport du politique et de l’économie qui se trouve posé lui aussi pour la
première fois, de façon explicite, dans l’oeuvre de Marx et sa solution échappe
à toute équivoque. L’économie n’est pas l’essence, n’est pas la réalité et
ne saurait la définir ni la déterminer, être un principe de détermination”.
14 “A história enquanto o progresso na consciência de liberdade é a
justificação de cada liberdade que tem sua efetividade na constituição do
Estado do mundo moderno” (RIEDEL, 1982, p. 220).