|
Karl Marx ✆ Cristina Serrano Ortuño |
Maurício Vieira Martins | O artigo discute até que ponto uma
concepção de mundo teleológica está presente no npensamento de dois autores tão
distintos como Darwin e Marx. Entendendo tal concepção como aquela que afirma
que o curso da história natural e social ruma em direção a uma finalidade
determinada, realizou-se aqui um movimento duplo. Num primeiro momento, comentamos
aquelas passagens que parecem de fato confirmar a presença de uma visão de mundo
finalista na obra dos dois autores. Não obstante isso, num segundo momento do
artigo – e também a partir de uma investigação textual – sustentamos que ambos autores
elaboraram, cada qual a seu modo, conceitos que permitem superar os limites da referida
visão finalista. Desta forma, ficam esboçadas as bases para o entendimento da História
como um processo simultaneamente determinado e em aberto se fazendo. Entendemos
ser tal entendimento o veio mais fecundo das distintas obras, a ser resgatado e aprofundado em nossa contemporaneidade.
*****
El artículo analiza hasta qué punto una
concepción de mundo teleológica está presente en el pensamiento de dos autores
tan distintos como Darwin y Marx. Entendiendo tal concepción como aquella que
afirma que el curso de la historia natural y social se dirige hacia un fin
determinado, se realizó aquí un doble movimiento. En un primer momento,
comentamos aquellos pasajes que parecen confirmar la presencia de una visión de
mundo finalista en la obra de los dos autores. Sin embargo, en un segundo
momento del
artículo – y también a partir de una investigación textual –
sustentamos que ambos autores elaboraron, cada uno a su manera, conceptos que
permiten superar los límites de la referida visión finalista. Así, quedan
esbozadas las bases para la comprensión de la Historia como un proceso
simultáneamente determinado y en abierto que está siendo hecho. Comprendemos
que este entendimiento es el fundamento más fecundo de las distintas obras, a
ser rescatado y profundizado en la contemporaneidad.
“A
teleologia, tal como usualmente entendida, havia recebido um golpe mortal pelas
mãos do senhor Darwin”1; assim se pronunciou Thomas Huxley, ao ler pela
primeira vez A origem das espécies, texto publicado em 1859. Quando
reconstituímos a ambiência intelectual de meados do século XIX,
torna-se mais claro o sentido deste comentário. Com efeito, era
então predominante uma concepção que visualizava o transcurso da história no
mundo natural e social como sendo presidido por uma finalidade, um telos. Não obstante as
diferenças existentes entre cada perspectiva teleológica, pode-se afirmar que era
recorrente a suposição de que a finalidade a ser alcançada relacionava-se com o aprimoramento
das diferentes espécies vivas, inclusive e sobretudo a nossa espécie humana. Ao
investigar os pressupostos filosóficos das perspectivas teleológicas, vemos que eles se
enraízam, afinal, numa certa concepção religiosa do cosmos: a imagem de um Deus ou demiurgo
voluntarioso que imprime sua finalidade numa matéria inicialmente amorfa é
recorrente em diferentes cosmologias. Desde o Timeu de Platão, até o
Espírito Absoluto de Hegel, a busca por uma finalidade era concebida como força
motora incontornável que exerce seus efeitos nos mais diferentes domínios da
experiência. Mas por que, poderíamos nos indagar, chamou a atenção em especial de
T.
Huxley
o conteúdo antiteleológico do texto de Darwin de 1859? Por que razão também F. Engels durante
sua leitura de A origem..., escreveu uma carta para K. Marx afirmando que “havia
ainda um aspecto da teleologia a ser demolido, e agora ele foi”2? Merece
análise o fato de que, entre as inúmeras questões presentes no extenso texto
darwiniano de 1859, alguns leitores ilustres destacaram especialmente o que
entenderam ser uma crítica a uma concepção finalista da natureza que ali se
manifestava.
Levando-se em conta tais aspectos aqui
apenas inicialmente aflorados, esclarecemos que o artigo que se segue tem um
objetivo pelo menos duplo. O primeiro deles é tornar mais transparentes as
razões pelas quais a concepção de Darwin sobre as espécies foi recebida como
sendo uma crítica à teleologia natural. O segundo é evidenciar que também K.
Marx, certamente percorrendo um trajeto bem distinto do de Darwin, vai se ver
envolvido ao longo de sua obra num debate com as concepções teleológicas de sua
época (a de Hegel à frente), mas tendo como objeto a própria história humana.
Talvez não seja excessivo, aliás, lembrar que, durante a leitura do próprio
Marx (em dezembro de 1860) de A origem das espécies, ele escreveu a
Engels que “neste livro se encontra o fundamento histórico-natural de
nossa concepção”. Observação forte – tendo em vista que um fundamento
é
algo essencial na obra de um pensador –, que sugere existir aqui um núcleo
temático que demanda investigação.
Por outro lado, dificulta nossa tarefa
saber que o ponto sob exame é particularmente controvertido. Pois há autores
importantes que entendem (diferentemente dos já citados T. Huxley e F. Engels)
que o darwinismo seria, afinal, uma forma mais sofisticada de teleologia, a
ponto de James Lennox – um biólogo contemporâneo bastante conceituado – ter
escrito um artigo intitulado: “Darwin was a Teleologist”3.
E também no que diz respeito à recepção dos textos de Marx, são incontáveis as
leituras que afirmam que, no fundo, a aposta marxiana numa futura sociedade
socialista seria a reedição de uma escatologia secularizada (basta lembrar a
vertente interpretativa sustentada, dentre outros por Leszek Kolakowski). Como
vemos, o teor do relacionamento dos dois autores ilustres aqui em foco com uma
certa visão finalista da história, longe de ter gerado um consenso mínimo entre
os comentaristas provocou, na verdade, as mais ásperas divergências no debate
posterior.
Mas antes de enfrentarmos este núcleo
temático – com todas as ambivalencias que, reconhecemos desde já, de fato o
caracterizam –, um último comentário introdutório se faz necessário. Pois a
aproximação que fizemos pouco atrás entre as concepções de Darwin e Marx
certamente não significa a inexistência de divergências entre estes dois
pensadores. Longe disso: as diferenças existem e são consideráveis. Além do
fato, bastante óbvio, de que Darwin se ocupa daqueles fenômenos do chamado
mundo natural, ao passo que Marx elege um objeto bem distinto (as sociedades
humanas já constituídas), existem tensões reais entre as duas visões de mundo.
É bem conhecido, por exemplo, o registro
de que, para além de seu entusiasmo inicial, Marx afirmou também que Darwin
teria transposto acriticamente a realidade competitiva de uma sociedade
capitalista para o domínio dos fenômenos naturais4. Darwin, por sua vez,
educadamente recusou a oferta que E. Aveling – genro de Marx – lhe fez. Tal
oferta consistia numa dedicatória formal ao próprio Darwin do livro sobre
religião que Aveling havia escrito (não se tratava de O capital
de
Marx, como durante muito tempo erroneamente se supôs). E o naturalista inglês
manifestou sua recusa deixando por escrito um pronunciamento que, embora
respeitoso, sugere que ele tinha algumas reservas à visão de mundo assumida por
Aveling5.
Isso posto, não deixa de ser verdade que
uma articulação entre a visão de mundo darwiniana e a marxista é certamente
possível, e vem sendo explorada por diferentes autores, a rigor já desde o
século XIX. O presente artigo se inscreve portanto nesta tradição, buscando sua
originalidade não só no exame de um aspecto conceitual determinado, como também
na tentativa de atualizar um debate.
* * *
Comecemos então por Darwin. Para entender
sua polêmica com a teleología naturalista, é necessário ter em mente que a
tomada de posição darwiniana se inscreve numa concepção mais geral, que afirma
a existência de sucessivas transformações no âmbito das diferentes espécies de
seres vivos, sejam eles animais ou plantas. Conforme é sabido, foi na recusa da
aceitação do relato bíblico sobre a origem das espécies, presente no livro do
Gênesis, que a singularidade da posição de Darwin se manifestou com mais força.
Tal relato influenciava mesmo os mais eminentes cientistas do século XIX, que
assumiam o pressuposto de que as diferentes espécies vivas haviam sido criadas
diretamente por Deus, não cabendo dizer que elas sofreram modificações, já que
se manteriam estáveis ao longo do tempo. Para explicar as então recentes
descobertas de fósseis que mostravam claramente que a Terra fora povoada por
outros entes, bem distintos dos atuais, a alternativa existente era afirmar que
Deus havia criado e destruido sucessivamente diferentes espécies, mas que a
Bíblia relatava apenas o último episódio da criação.
Em contrapartida, ao afirmar a existência
de um ancestral comum para as diferentes espécies e, consequentemente,
sustentar que elas se transformaram
profundamente ao longo do tempo, Darwin dá uma história para o mundo
natural. Ele nos mostra que mesmo aquelas formas de vida que nos parecem mais
estabilizadas são na verdade o produto de um devir. Daí nosso autor afirmar ter
chegado à “cabal convicção de que as espécies se modificaram e
estão se modificando lentamente, através da preservação e acumulação de
variações favoráveis sucessivas e ligeiras”6. Certamente
Darwin não foi o primeiro a afirmar estas modificações: ele próprio, já nas
páginas iniciais de A origem, enumera judiciosamente autores como
Lamarck, Geoffroy Saint-Hilaire e H.C. Wells (entre outros) como precursores de
sua teoria. Porém, o fato é que Darwin foi o responsável pela maior
sistematização e análise da enorme quantidade de processos e fenômenos naturais
que comprovavam, para usar a sua expressão, a “descendência com modificações”
(o termo “evolução” só se estabilizará posteriormente) e, mais do que isso,
pela formulação de um conceito explicativo do mecanismo pelo qual isso ocorre.
Ultrapassado o limite das concepções fixistas
de origem bíblica, e aceito finalmente o transformismo do mundo natural, havia
porém uma questão crucial a ser enfrentada: como transcorria este devir
histórico? Seria correto afirmar, por exemplo, que ele é comandado por uma
finalidade? Chegamos então ao nosso tema central. Não sendo a ocasião de
analisar aqui os diferentes matizes de evolucionismo presentes no século XIX,
mencionaremos apenas um deles, que ficou conhecido como ortogênese.
Resumidamente falando, a ortogênese supunha que a mudança nos organismos se
devia a uma tendencia interna existente no interior de cada um deles: era o
desejo (besoin) de mudança a que se referia um Lamarck. Ainda
que rompendo com o modelo fixista mais ortodoxo, as concepções ortogenéticas
eram teleológicas: supunham que as transformações nos organismos transcorriam
sob a égide de uma finalidade neles internamente inscrita. Já o mecanismo de
mudança das espécies afirmado por Darwin é inteiramente diverso, ele o nomeia
como seleção natural, e é disso que nos ocuparemos a seguir. Convém
desde agora lembrar que, ao analisar o conceito de seleção natural, o
pesquisador contemporâneo se vê diante de um desafio singular: sustentamos a
hipótese de que, em sua gênese, o conceito apresentava ainda uma matriz
teleológica (que explicitaremos a seguir). Não obstante isso, seus
desdobramentos posteriores apontam numa direção muito distinta da moldura
inicial na qual foi produzido.
Recordemos que o conceito de seleção
natural foi originalmente formulado por Darwin a partir de uma comparação com
os criadores de animais e com os melhoristas de plantas. Pois o que eles faziam
era uma seleção, no interior da prole de uma determinada espécie, daqueles
exemplares que desejavam reproduzir de acordo com criterios valorativos humanos
(os mais “belos”, ou os mais “vigorosos”, etc.). Quando Darwin compara a ação
da natureza com a destes agentes humanos, ele visava sobretudo tornar mais
claro o entendimento das enormes modificações históricas pelas quais passaram
as espécies atuais: a ideia era evidenciar que apenas o contato com o exemplar
vivo atual é insuficiente para atestar a imensa distância entre ele e seu
ancestral mais remoto. Porém, notemos que a analogia entre os processos
naturais e a ação humana desenvolvida pelos criadores de animais traz para o
argumento darwiniano um complicador que gerou imensas polêmicas posteriores. É
que o passo seguinte do argumento será afirmar que a própria natureza – e não
apenas os homens – tem condições de operar uma seleção análoga. Daí a pergunta
formulada pelo próprio Darwin:
“Por que,
se o homem é capaz de selecionar pacientemente as variações que lhe são mais
proveitosas, não seria capaz a natureza de selecionar as variações que, sob
determinadas condições novas de existência, não se mostrassem mais úteis para
seus possuidores? (...) De minha parte, não vejo limites para este poder
(..).”.7
Ora, o risco aqui é evidente: atribuir à
natureza o papel de um sujeito volitivo, que age – consciente ou
inconscientemente – seguindo a meta implícita de produzir formas de vida “mais
úteis”. Se, no caso dos criadores de animais e plantas que planejam quais as
características que neles desejam tornar mais acentuadas, existe de fato um
sujeito consciente que se põe finalidades (e a inteira atividade transcorre sob
a égide da finalidade posta como objetivo), já no que toca à natureza, se
admitirmos a existência de um processo análogo, no fundo arriscamo-nos a
reabilitar a antiga teleologia que estaba precisamente sendo questionada. Se
esta é apenas uma possibilidade de interpretação ao início de A origem
das espécies, ela ganha força nas páginas finais do texto, quando Darwin afirma
textualmente que “assim, é da batalha natural, é da fome e da morte que advém o
mais elevado objetivo que somos capazes de conceber: a produção dos animais superiores.
Existe efetiva grandiosidade neste modo de encarar a Vida (...)”.8 Vê-se aqui com
clareza que alguns supostos de uma peculiar concepção de mundo finalista ainda
se infiltram no texto darwiniano de 1859. Com efeito, ele comporta uma certa
concepção de natureza como um sujeito volitivo, que age rumo ao seu progressivo
aperfeiçoamento.
Formulada esta concepção mais geral, na
qual inicialmente se inscreve o conceito de seleção natural, cabe agora
destacar que, no seu interior, ela abriga conteúdos bastante distintos de seus
pressupostos filosóficos. Se não, vejamos: num primeiro momento, nosso autor
enfatiza que no interior da prole de uma espécie existem pequeñas variações que
acabam por interferir na maior ou menor capacidade de sobrevivência de seus
portadores (apenas como exemplo, o formato do bico de uma mesma espécie de
pombos nunca é exatamente idêntico). Como o ambiente natural paulatinamente se
transforma, e os recursos disponíveis no mais das vezes são escassos para prover
a subsistência de toda a biota, aquelas variações interferem no maior sucesso
reprodutivo de seus portadores. Ao longo de sucessivas gerações, teremos uma
amplificação das diferenças originais, em estreita correlação com o devir do
meio natural. Pedimos a atenção do leitor para o fato de que, quando
deixamos de lado aquela referida moldura mais geral do conceito (que supunha
ser a inteira natureza um sujeito volitivo) e examinamos seus conteúdos peculiares,
o mecanismo de seleção natural, assim formulado, já não envolve nenhuma
finalidade embutida.
Tomemos um exemplo do próprio Darwin,
referente ao mimetismo presente em algumas espécies:
“Ao
observarmos a cor verde dos insetos que se alimentam de folhas, ou o
pardomosqueado dos que comem as cascas das árvores..., temos de admitir que
estas colorações são úteis para essas aves e insetos, uma vez que os mantêm
fora de muitos perigos”9.
Mas ora, enquanto uma aproximação
teleológica a esta questão diria que uma certa cor foi adquirida com “a
finalidade” de uma espécie escapar de seus predadores, já a explicação por
seleção natural afirma algo bem distinto disso. Ela apenas põe em evidência o
fato de que, digamos, numa prole de insetos da mesma espécie, com pequenas
variações no que se refere à coloração, têm maior chance de sobreviver aqueles
que apresentam semelhança com a folhagem do ambiente onde vivem. Ao longo de
muitas gerações, o maior sucesso reprodutivo caberá precisamente àqueles
descendentes mais adaptados a esta nova realidade.
Assim, o fenômeno do mimetismo, que nos
aparecia inicialmente como uma modificação teleológica – este persistente
raciocínio finalista que reincide em nosso olhar humano nas mais diferentes
ocasiões... – é na verdade o resultado de uma concatenação de causas
eficientes, que operam sem finalidade prévia. Conforme o comentário mais geral
de E. Mayr, um dos maiores evolucionistas do século XX:
“Darwin
nos ensinou que mudanças evolutivas aparentemente teleológicas e a produção de
características adaptativas são apenas o resultado de evolução variacional, que
consiste na produção de grande quantidade de variação a cada geração e na
sobrevivência probabilística daqueles indivíduos que restam após a eliminação
dos fenótipos menos aptos. A adaptação, assim, é um resultado a posteriori, e
não a busca a priori de uma meta. Por essa razão, a palabra “teleológico” é
enganadora quando aplicada a características adaptativas”.10
Voltando ao próprio Darwin, cabe agora
dizer que, anos depois da publicação de A origem, ele retornará
à questão da teleologia em sua Autobiografia (redigida em
1876).
Este último texto é um documento
particularmente instrutivo, pois nele podemos presenciar a retrospectiva feita pelo
próprio Darwin de seu trajeto. E é com certa surpresa que o leitor
contemporâneo se depara com o explícito reconhecimento, por parte do autor, do fato de que à
época da redação de A origem, ele ainda possuía efetivas convicções religiosas –
mesmo que bem distintas do criacionismo tradicional – que foram retificadas ao longo de seu
trajeto posterior. Confirmando a hipótese de leitura que aquí apresentamos, se
no texto de 1859 ainda é possível encontrar passagens problemáticas, que podem
sugerir um comprometimento do autor com supostos finalistas, já na Autobiografia
Darwin
se diferencia de modo mais radical daqueles que acreditavam existir na natureza um
desígnio:
“O antigo
argumento do plano [design] da natureza, tal como exposto por Paley, e que
antes me parecia tão conclusivo, cai por terra, agora que a lei da seleção natural
foi descoberta. Já não podemos argumentar, por exemplo, que a bela charneira
[hinge] de uma concha bivalve deve ter sido feita por um ser inteligente, como
a charneira de uma porta foi feita pelo homem. Parece haver tão pouco planejamento
na variabilidade dos seres orgânicos e na ação da seleção natural quanto na
direção em que sopra o vento. Tudo na natureza é resultado de leis fixas”.11
A passagem é fundamental. Nela, Darwin consuma sua ruptura com a cosmovisão
teleológica – ruptura que sem dúvida já se iniciara em A origem – e distingue
pelo menos dois níveis distintos de organização do ser. Se da charneira de uma
porta pode-se legitimamente afirmar que foi desenhada por um homem para atender
uma certa finalidade, o mesmo não se pode dizer da articulação que une as duas peças
de uma concha bivalve. Esta última é o resultado de um processo de seleção
natural, onde não houve nenhum tipo de finalidade comandando seu transcurso,
mas apenas sucessivas transformações que beneficiaram os organismos portadores
de certas características. Aqui, vemos um Darwin interessado em distinguir duas
dimensões do ser: enquanto no ser natural – na concha bivalve – não cabe falar
em planejamento, já no mundo formado pela ação humana (neste mundo onde se
presentifica a elaboração da “charneira de uma porta”), aí sim cabe falar em
planejamento, em ação orientada para um fim.
* * *
A referência ao exemplo darwiniano da
charneira de uma porta, produto do trabalho humano, nos oferece a ocasião
adequada para ingressarmos agora no pensamento de Marx. Sem dúvida, o filósofo
alemão foi um dos pensadores que mais se ocupou desta experiência básica de
nossa espécie que é a transformação da natureza pelo trabalho. E quando
estudamos os escritos de Marx nos quais ele conceitua com mais vagar os elementos
presentes num processo de trabalho, vemos que, nesta
precisa esfera do ser, é inegável a existência de uma dimensão
teleológica. É o que nos esclarece uma conhecida passagem de O capital:
“Uma
aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de
um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da
melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em
realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existía antes idealmente na imaginação do
trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele
imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual
constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar
sua vontade”.12
Temos aqui registrada a descontinuidade
entre a nossa espécie e as demais: ao invés da ação apenas instintiva, emerge
nos humanos a capacidade de figurar idealmente sua própria atividade. Mas,
atenção, esta descontinuidade não precisa ser interpretada como ruptura
absoluta: assim como Darwin, e diferentemente dos criacionistas de sua época
(interessados em afirmar a irredutível centelha divina do homem, portador de
uma alma e coroa da criação), Marx não constrói uma muralha separando nossa espécie
das demais. Já em seus Manuscritos Econômico-filosóficos, ele escreve
que “o
homem é imediatamente ser natural”13 (ser enraizado na natureza, portanto),
para pouco depois adendar que o homem é capaz de objetivações conscientes.
Diferença que se revelará decisiva ao longo da progressiva exteriorização do
trabalho humano: assim é que, se o leitor deste artigo se dispuser agora a
examinar o que existe à sua volta, não verá uma natureza originária, mas sim um
gigantesco conjunto de edificações, de artefatos, etc., produtos da objetivação
do trabalho humano.
O que nos cabe agora indagar é se, tal
como ocorre na experiência laboral, também o decurso histórico mais geral seria
orientado, na concepção de Marx, por uma finalidade. Tal como em Darwin, a
aproximação a esta pergunta necessita ser feita com cuidado. Num primeiro
contato com a obra marxiana, deparamo-nos com passagens que parecem se
encaminhar para uma resposta afirmativa à questão.
Tomemos, a título de exemplo, os já
citados Manuscritos Econômico-filosóficos. Neles, ao
referir-se a uma futura sociedade comunista, Marx afirma que “é [o
comunismo] o enigma resolvido da história, e se sabe como esta solução”14. Ora, é fato que
um enunciado que afirma existirem enigmas na história, que encontrarão sua solução
apenas no momento da meta realizada, caminha bem próximo a uma concepção
finalista da história. E para que não se diga que esta é uma passagem
localizável apenas na juventude de Marx, podemos citar também o capítulo 24 de O capital, onde após
fazer uma análise da violência presente no processo de transição da sociedade
feudal para a sociedade capitalista, nosso autor apresenta nestes termos o
futuro advento de uma sociedade socialista, que entende estar bem próximo:
“Soa a
hora final da propriedade particular capitalista. Os expropriadores são
expropriados. (...) A propriedade privada capitalista é a primeira negação da
propriedade individual baseada no trabalho próprio. Mas, a produção capitalista
gera sua própria negação, com a fatalidade de um processo natural. É a negação
da negação”.15
Ao invocar a “fatalidade de um processo
natural”, Marx torna-se vulnerável àquela mencionada crítica que entende ser
sua concepção uma versão materialista da filosofia da história de Hegel (esta
sim, reconhecidamente teleológica). Possibilidade de leitura que se vê
reforçada pelo uso do conceito hegeliano de negação da negação. Feito este
registro, analisemos agora a vertente que nos parece mais fecunda no interior
do pensamento de Marx. Pois de modo algo paradoxal, eis que o próprio filósofo
nos oferece os meios para se desconstruir a matriz teleológica anterior, rumo a
uma concepção mais aberta do processo
histórico. E não é preciso recorrer-se apenas à obra da maturidade de Marx para
comprovar isso: mesmo num texto como A ideologia alemã, na polêmica
com os filósofos neo-hegelianos, encontramos uma excelente passagem a este
respeito (como que a nos mostrar que a partição excludente entre jovem Marx e
velho Marx não é, afinal, uma boa chave de leitura). Nela, nosso autor se
pronuncia com muita clareza contra o idealismo teleológico que caracterizava a
formulação dos neo-hegelianos, onde a história surgia como um sujeito dotado de
vontade.
Diferenciando-se de tal concepção, o texto
afirma o caráter mundano da experiência humana histórica:
“A
história não é senão a sucessão das diversas gerações, cada uma das quais
explora os materiais, capitais, forças de produção que lhe são legados por
todas as que a precederam, e que por isso continua, portanto, por um lado, em
circunstâncias completamente mudadas, a actividade transmitida, e por outro
lado modifica as velhas circunstâncias, o que permite a distorção especulativa
de fazer da história posterior o objectivo da anterior, por exemplo, colocar
como subjacente ao descobrimento da América o objectivo de proporcionar a
eclosão da revolução francesa”.16
Evitando, pois, a visão antropomórfica de
história, Marx a devolve a seu solo fundante: concatenação temporal das
diferentes gerações de seres humanos, que se relacionam entre si e com a
natureza. Quanto à existência de uma teleologia neste processo, o nítido
exemplo referente à relação entre o descobrimento17 da América e a Revolução
Francesa nos mostra que o que estava ali presente era tão somente uma relação
causal, mas não teleológica. Sendo mais explícitos: ao fazer a análise dos processos
históricos que levaram à eclosão da Revolução Francesa, é legítimo incluir-se o
descobrimento da América como um deles. Mas uma perspectiva teleológica não se satisfaz
com este sóbrio registro: ela vai bem mais além, e afirma que havia uma finalidade
– consciente ou inconsciente – no fenômeno de 1492, que seria propiciar a eclosão,
séculos depois, da própria Revolução Francesa. É precisamente contra este erro teleológico
que se endereça o alerta de Marx.
Voltando agora à questão que apresentamos
mais atrás, referente à possibilidade de se expandir a teleologia existente num
processo de trabalho para o transcurso histórico mais geral, vemos com nitidez
que a resposta que se impõe é negativa. Ou seja: é um erro
transpor-se as categorias explicativas do processo de trabalho para o ámbito macro-histórico. Pois se no
primeiro caso a atividade transcorre sob a égide de uma causalidade de fato
marcada por uma teleologia, o mesmo não ocorre no âmbito do processo histórico
como um todo.
Mas não seria uma contradição afirmar –
como faz Marx – que os homens agem perseguindo finalidades e que mesmo assim a
história humana não é teleológica? De forma alguma. Basta lembrar que, na
concepção marxiana, a partir da atividade humana emerge uma realidade distinta
daquela intentada pelos seus agentes. Seja na formação de um ente singular, o
capital (que adquire uma lógica própria de expansão), seja nos cotidianos
conflitos entre as classes sociais, vale aqui lembrar uma passagem de F. Engels
que ressalta com clareza a imprevisibilidade do curso histórico assim formado: “o que um
deseja tropeça com a resistência oposta por outro, e o resultado de tudo isto é algo que
ninguém desejava”18. Formulação que nos deixa diante do caráter em aberto da experiência
humana se fazendo: experiência determinada, sem dúvida, mas ainda assim imprevisível.
É bem sabido que as advertências quanto ao
cuidado necessário para se analizar os diferentes momentos constitutivos de um
processo histórico nem sempre foram observadas pelos seguidores de Marx e
Engels. Com efeito, já enquanto os autores estavam vivos, passou a circular uma
versão de seu pensamento que interpretava as hipóteses marxianas sobre a
importância das condições objetivas da vida humana no devir histórico como
sendo imperativos a serem seguidos igualmente por todas as sociedades (procedimento
que, ao fim e ao cabo, caracterizaria um estreito finalismo histórico). Entre as
passagens nas quais Marx protesta contra esta vulgarização de seu pensamento –
ele que já havia afirmado que “tudo que eu sei é que não sou marxista”19... –,
merece destaque a carta de 1877 endereçada ao editor do periódico russo Otecestvenniye Zapisky. Nela, Marx
diverge frontalmente da interpretação dada à sua abordagem do processo de
transição de uma sociedade feudal para a sociedade capitalista:
“Isso é
tudo. Mas não é o bastante para o meu crítico. Ele se sente obrigado a metamorfosear
meu esboço histórico da gênese do capitalismo na Europa Ocidental numa teoria
histórico-filosófica da marcha geral imposta pelo destino a cada povo,
quaisquer que sejam as circunstâncias históricas em que ele se encontra, de
modo que se possa finalmente chegar à forma de economia que assegura, com a
maior expansão das forças produtivas do trabalho social, o desenvolvimento mais
completo do homem. Mas eu lhe peço desculpas. Isso é me prestar demasiada
homenagem e me envergonhar bastante”.20
O que era então, na pena de Marx, o esboço
de uma pesquisa histórica a ser testado em cada caso concreto passou a ser
erróneamente interpretado como uma espécie de dogma a ser seguido de modo
universal por todas as sociedades, daí o protesto marxiano contra a
trivialização de sua teoria.
* * *
Buscamos demonstrar neste breve artigo que,
percorrendo trajetos distintos, tanto Marx como Darwin deram uma contribuição
singular para o entendimento dos procesos históricos de longa duração. Ao
recusar as teses dos fixistas de sua época, Darwin nos mostra a natureza como
um processo histórico se fazendo, que passa agora a demandar uma preocupação
genealógica para o entendimento das diferentes espécies. “Nossas classificações
hão de se transformar em genealogias”, nosso autor afirma de modo muito
sugestivo ao final de A origem das espécies.
Já em Marx encontramos uma recusa das
polaridades que então disputavam a primazia no entendimento dos fenômenos
sociais: nem Hegel, com sua teodiceia do Espírito, nem os empiristas, que
apresentavam uma mera “coleção de fatos mortos”21. Vai então
para um primeiro plano a afirmação de um processo histórico singular, que
emerge da própria atividade dos grupos humanos em seu intercâmbio com a
natureza. Muito brevemente, deixemos aqui anotado que é em função desta
emergência de categorías especificamente sociais que o basilar conceito
darwiniano de seleção natural – tão pertinente, como vimos, para a compreensão
do devir das espécies na natureza – não deve ser transposto de modo acrítico
para o âmbito das relações sociais (por mais que assim proceda a volumosa bibliografia
produzida pelos defensores da sociobiologia contemporânea...)22.
Enfim, ao longo do percurso destes dois
autores clássicos, vimos também que ambos se defrontaram com uma antiga e
persistente concepção que afirma existir uma finalidade oculta comandando o
transcurso dos processos naturais e históricos. Essencialmente equivocada, tal
concepção dilata categorias que são válidas num ámbito determinado da
experiência humana, expandindo-as para processos que a rigor, não são
teleológicos.
Procuramos também tornar manifesto, ainda
que isso possa soar inicialmente paradoxal, que em certas passagens dos dois
autores examinados, é possível localizar marcas da concepção que está sob
crítica. Sendo assim, aquele comentarista que se propuser a apresentar aos seus
leitores um Marx finalista, ou um Darwin teleólogo, conseguirá em parte fazer
isso, pois existem momentos nos dois pensadores que permitem esta
interpretação. Porém, esta leitura, longe de ser, no nosso entendimento, a mais
produtiva de seus textos, finda por desconsiderar o fundamental: o enorme
esforço empreendido por ambos na crítica às visões de mundo então
predominantes, que projetavam categorias humanas finalistas em processos não
intencionais.
Enfim, partindo de uma teleologia, matriz
de pensamento fortemente enraizada no século XIX (e que deixou marcas na obra
deles mesmos), Marx e Darwin nos ofereceram as condições de operar a sua
ultrapassagem e visualizar uma história em aberto se fazendo. Para tal
visualização, avulta em importância um trabalho de interpretação que, acompanhando
a letra destes textos clássicos, desdobre-a para deles extrair aquilo que é
mais fecundo e passível de diálogo com a
nossa contemporaneidade.
Referências
Bibliográficas
Darwin, Charles (2000). Autobiografia,
Rio
de Janeiro: Contraponto.
______ (2002). Origem
das espécies, Belo Horizonte: Itatiaia.
Fay, Margaret A. (1978). “Did Marx Offer to Dedicate Capital to Darwin?:
A Reassessment of the Evidence”, In Journal of the History of Ideas, Vol. 39, No. 1, p. 133-146.
Lennox, James (1993). “Darwin was a Teleologist”, In Biology and Philosophy vol. 8, p. 408-421.
Martins, Maurício Vieira (2006). “Marx com
Espinosa: em busca de uma teoria da emergência”, In Crítica
Marxista, n. 22, Rio de Janeiro: Revan, p. 32-54.
Marx, K. (1980). O capital
(Livro
1, volume I), Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
______. (1980). O capital
(Livro
1, volume II), Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
______. (2004). Manuscritos
Econômico-filosóficos, São Paulo: Boitempo Editorial.
Marx, K. e Engels, F. (1981). A
ideologia alemã, Lisboa: Edições Avante.
______. (s/data). Obras
Escolhidas, vol 3, São Paulo: Editora Alfa-Omega.
Mayr, Ernst (2005). Biologia,
ciência autônoma, São Paulo: Companhia das Letras.
______ (2005). Biologia,
ciência única, São Paulo: Companhia das Letras.
Notas
1 Apud Mayr, Ernst (2005). Biologia,
ciência autônoma, São Paulo: Companhia das Letras. p. 57.
2 Engels to Marx (11/12/1859).
Sítio da Internet:http://www.marxists.org/archive/marx/works/1859/letters/59_12_11.htm.
Consulta em 10/03/2010.
3 Lennox, James (1993). “Darwin was a Teleologist”, In Biology and Philosophy vol. 8, p. 408-421.
4 Marx to Engels (18/06/1862).
Sítio da Internet: http://www.marxists.org/archive/marx/works/1862/letters/62_06_18.htm.
Consulta em 10/03/2010.
5 A reconstituição correta
deste episódio pode ser encontrada em: Fay, Margaret A. (1978). “Did Marx Offer to Dedicate Capital to
Darwin?: A Reassessment of the Evidence”, In Journal of the History of Ideas, Vol. 39, No. 1, p. 133-146.
6 Darwin, Charles (2002). Origem
das espécies, Belo Horizonte: Itatiaia. p. 375.
7 Ibidem, p. 366.
8 Ibidem, p. 381.
9 Ibidem, p.98.
10 Mayr, Ernst (2005). Biologia,
ciência única, São Paulo: Companhia das Letras, p. 76-77.
11 Darwin, Charles (2000). Autobiografia,
Rio
de Janeiro: Contraponto, p. 75 (corrigido de acordo com o original em inglês).
12 Marx, K. (1980). O capital
(Livro
1, volume I), Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 202.
13 Marx, K. (2004). Manuscritos
Econômico-filosóficos, São Paulo: Boitempo Editorial, p. 127.
14 Ibidem, p. 105.
15 Marx, K. (1980). O capital
(Livro
1, volume II), RJ: Civilização Brasileira. p. 881.
16 Marx, K. e Engels, F. (1981). A
ideologia alemã, Lisboa: Edições Avante. p. 47-48.
17 Seguindo a terminologia do texto marxiano,
falamos aqui em descobrimento da América. Sabe-se que a historiografia
contemporânea questiona tal expressão, ressalva que não afeta o cerne do
presente argumento.
18 “Engels a Bloch (carta de 21/22 de
setembro de 1890)”. In: Marx, K., e Engels,
F. (s/data). Obras Escolhidas, vol 3, São Paulo: Editora Alfa-Omega, p. 285.
19 Apud “Engels a Schmidt
(carta de 05 de agosto de 1890)” In: Ibidem, p. 283.
20 Letter from Marx to Editor of the Otecestvenniye Zapisky (11/1877), Sítio da Internet: http://www.marxists.org/archive/marx/works/1877/11/russia.htm. Consulta em 03/2010.
21 Marx, K e Engels, F. (1981). Op. Cit,
p. 30.
22 Abordamos este ponto com mais vagar em
nosso artigo: Martins, Maurício Vieira (2006). “Marx com Espinosa: em busca de
uma teoria da emergência”, In Crítica Marxista, n. 22, Rio de
Janeiro: Revan, p. 32-54. Vale lembrar que a crítica ao teleologismo encontra
em B. Espinosa um de seus antecessores mais contundentes.