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Karl Marx ✆ João Paulo
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Lucas Carvalho Peto
Objetiva-se evidenciar e discutir os
fundamentos que tornam possível problematizar a questão da corporeidade [Leiblichkeit] em relação com o processo
de trabalho der Arbeitsprozeß] a
partir dos escritos de Marx. Para tanto, são apresentadas as críticas que Marx
dirige à concepção de subjetividade na filosofia de Hegel. Posteriormente,
elucidam-se alguns dos pontos principais da crítica de Marx à filosofia
pós-hegeliana. Por fim, apresentam-se os fundamentos categoriais do processo de
trabalho e a relação da corporeidade com este.
Introdução
O objetivo destas notas1 é apresentar e
analisar os fundamentos que possibilitam problematizar a questão da
corporeidade [Leiblichkeit] em relação com o processo de trabalho na filosofia
de Marx. Os debates acerca da corporeidade são,
concomitantemente, contemporáneos e históricos. A questão aparece de formas
distintas. A corporeidade é, com frequência, circunscrita sob a rigidez do binômio
mente-corpo. O corpo eclode como obstáculo às aspirações da razão ou se
configura como manancial primordial para a fuga das amarras da ilustração. A
corporeidade aparece também como processo orgânico transversal, o próprio
sujeito, ente criador. O corpo possui, igualmente, uma importância como
realidade histórica, porquanto nele
“[...]
estão inscritas todas as regras, todas as normas e todos os valores de uma
sociedade específica” (Daolio, 1995, p. 105). Essas concepções perpassam
diferentes disciplinas e épocas.
O
debate sobre o corporeidade na filosofia grega estendeu-se desde o “panteísmo materialista”
dos físicos [φυσικσí̱]2
jônios até a afirmação aristotélica de que o corpo é a
forma da alma, passando pela ambígua dualidade platônica e o materialismo de
Demócrito. O corpo também expressava a saúde dos cidadãos [πολίτης]. Esta era
indicador da boa ordenança do Estado. Na lógica da polis, a corporeidade era “[…] elemento de glorificação e de interesse
do Estado” (Barbosa, Matos, & Costa, 2011, p. 25) e era ao redor do corpo
que se estruturavam as estratégias no campo de batalha. Não obstante, “[…] a
civilização grega não incluía as mulheres na sua concepção de corpo perfeito”
(Ibidem).
A corporeidade também é uma questão central
na filosofia cristã. O objetivo da lógica cristã parece ser a salvação da alma
– a libertação dos entraves que a corporeidade representa na direção da
purificação. Porém,
“[…]
a salvação anunciada pelo Evangelho não era apenas a salvação das almas, mas a
salvação dos homens, isto é, de cada um desses seres individuais, com sua
carne, seus membros, toda essa estrutura de órgãos corporais” (Gilson, 2006, p.
231). O discurso cristão é, portanto, transpassado por uma ambiguidade
suscitada por imagens engendradas sobre o corpo. Movimento pendular de
enobrecimento e menosprezo. Ao corpo do pecador, desordenado e aviltado,
opõe-se o harmonioso corpo da salvação. Na lógica do cânone do pensamento
cristão afirma-se “[…] o valor, a dignidade e a perpetuidade do corpo” (Gilson, 2006, p. 229).
Na idade moderna, o
“[…]
simples corpo vivente torna-se a aposta que está em jogo nas estratégias
políticas” (Agamben, 2002, p. 11). O corpo emergira como agente de práticas
sexuais transgressivas, configurando-se como lugar primevo de “crimes” contra a
religião, a moral e a sociedade. A corporeidade era algoz das impotentes “[...]
restrições sociais que visam conter as práticas sexuais dentro dos limites
estabelecidos pelas convenções e pelas leis”
(Grieco, 2009, p. 217).
Como exemplo de discurso contemporâneo
sobre a corporeidade, vale citar a “ecologia humana”, um dos ramos da biologia
contemporânea. O objetivo desta disciplina é compreender as relações entre os
seres humanos e o ambiente (Galindo, 1998, p. 15). O fator que articula esta
concepção é a inter-relação (Ibidem).
Esta se dá através da permeabilidade da corporeidade humana. Com efeito, a
corporeidade aparece não como uma dimensão que isola o ser humano do ambiente,
mas como o elo que o inscreve como parte deste. Existem debates acerca dos
limites da corporeidade. Por que “[...]
nossos corpos deveriam terminar na pele? Ou por que, além dos seres humanos,
deveríamos considerar também como corpos, quando muito, apenas outros seres também
encapsulados pela pele?” (Haraway, 2000, p. 101). Qual é a extensão da corporeidade?
O corpo é híbrido?
Diversos campos de produção de conhecimento
debruçaram-se, e continuam a debruçar-se, sobre a problemática da corporeidade.
Existem estudos acerca da motricidade, a questão da corporeidade na psicanálise
freudiana, corporeidade e teorias feministas, o corpo na biologia, na educação
física, nas artes plásticas, na literatura, em autores e autoras como Bourdieu,
Butler, Merleau-Ponty, Nietzsche, Foucault, Deleuze, Espinosa, na medicina etc.
À corporeidade se lançam demandas de ordem ontológica, epistemológica, ética,
moral, política, econômica etc. O importante é observar que as divergências e
congruências acerca da corporeidade remontam aos primórdios do desenvolvimento
da civilização ocidental e, ao mesmo tempo, mantêm-se relevantes na
contemporaneidade.
Considerado o objetivo, o material
primordial de análise são os textos marxianos. A concisão desta delimitação,
além de estabelecer o limite teórico, circunscreve também os possíveis
resultados. A configuração categorial que é possível extrair dos textos
marxianos não é a única, nem a mais atual, no que tange à problematização da
corporeidade. Essa explicitação não é de todo dispensável. O contrário é mais
fatual. Intentar apresentar uma noção de corporeidade a partir de Marx implica
em uma determinada compreensão acerca do ser humano. Uma determinada
compreensão ontológica, epistemológica, ética, política e econômica. Por isso,
apresentar os argumentos sobre os quais se pode erigir uma noção de corporeidade
a partir de Marx deve ser compreendido como uma possibilidade. Objetivando-se
apresentar a concepção de corporeidade em relação com o processo de trabalho na
filosofia marxiana, serão apresentadas notas acerca da em Marx. Posteriormente,
serão elucidados alguns dos pontos sobre o qual recai a crítica de Marx à
filosofia pós-hegeliana.
Sumário
1. Notas introdutórias sobre a problemática
da subjetividade em Marx
2. Apontamentos acerca da crítica de Marx à
filosofia pós-hegeliana
3. Corporeidade e processo de trabalho
4. Considerações finais
5. Referências