Bianca
Imbiriba Bonente | O objetivo desse trabalho é
estabelecer o contraste entre duas posições distintas sobre desenvolvimento:
aquela oferecida por Marx e aquela veiculada pela ciência econômica. Com isso,
esperamos mostrar, em primeiro lugar, que as teorias do desenvolvimento são
única e exclusivamente teorias do desenvolvimento capitalista, tanto no sentido
de que o limite teórico e prático da sua intervenção é o capitalismo (e apenas
o capitalismo), quanto no sentido de que ao fazê-lo projetam o capitalismo (uma
imagem dele, ao menos) como figura inexorável do futuro da humanidade. Em
segundo lugar, partindo de uma releitura da teoria social marxiana, defendemos
ser possível resgatar uma visão de mundo dentro da qual o termo desenvolvimento
é empregado de modo plenamente objetivo: isto é, utilizado exclusivamente para
se referir às propriedades dinâmicas de funcionamento do objeto examinado (independentemente
da forma como se julguem essas propriedades). Esperamos ainda mostrar como,
dentro dessa concepção, o desenvolvimento capitalista se apresenta como uma
fase historicamente contingente do desenvolvimento social em geral, indicando
ser não apenas possível, mas também necessário, realizar uma crítica negativa
do desenvolvimento capitalista.
Introdução 1
O objetivo deste trabalho é estabelecer o
contraste entre duas posições distintas sobre desenvolvimento, com implicações
distintas sobre a prática política: aquela oferecida por Marx e aquela
veiculada pela ciência econômica (especialmente entre as chamadas teorias do
desenvolvimento). A partir dessa contraposição, buscamos demonstrar, em
primeiro lugar, que no âmbito da teoria econômica o desenvolvimento é
entendido, em geral, como trânsito do “pior ao melhor” – o que envolve,
necessariamente, um juízo sobre condições pretéritas, presentes ou futuras,
realizado com base em determinados critérios pré-estabelecidos (produto per
capita, expectativa de vida, nível de escolaridade etc.). Além disso,
pretendemos mostrar que as teorias do desenvolvimento são única e
exclusivamente teorias do desenvolvimento capitalista, tanto no sentido de que
o limite teórico e prático da sua intervenção é o capitalismo (e apenas o
capitalismo), quanto no sentido de que ao fazê-lo projetam o capitalismo (uma
imagem dele, ao menos) como figura inexorável do futuro da humanidade.
Duas ressalvas: é claro que, ao realizar uma
inspeção crítica conjunta das teorias do desenvolvimento, não ignoramos (1) as
diversidades de formulações e (2) a possibilidade de que essas teorias
reconheçam a existência de problemas associados à dinâmica capitalista. No
entanto, mesmo quando críticas, essas teorias apresentam, quando muito, uma
crítica positiva: uma crítica que sempre se refere às condições imediatamente
dadas e às possibilidades que podem se pôr (também imediatamente) a partir
dessas condições (a crítica das condições e das possibilidades não é
realizada). Nos termos de Moishe Postone (2014, p. 84): uma crítica “que
critica o que existe com base no que também existe – aponta em última análise
para outra variação da formação social capitalista existente”.
Em segundo lugar, entendemos ser possível
resgatar uma visão de mundo dentro da qual o termo desenvolvimento é empregado
de modo plenamente objetivo, isto é, utilizado exclusivamente para se referir
às propriedades dinâmicas de funcionamento do objeto examinado
(independentemente da forma como se julguem essas propriedades). Esperamos
ainda mostrar como, dentro dessa outra concepção de desenvolvimento, o
desenvolvimento capitalista se apresenta como uma fase historicamente
contingente do desenvolvimento social em geral. A partir disso (especialmente
da forma como descrevemos a dinâ- mica de funcionamento dessa fase), concluímos
ser possível e necessário realizar uma crítica negativa do desenvolvimento
capitalista: “aquela que critica o que é sob as bases do que poderia ser – que
aponta para a possibilidade de outra formação social” (Ibidem).
Para tanto, o artigo encontra-se dividido em
duas seções (além da introdu- ção e conclusão). Na primeira delas, buscamos
defender, mais uma vez, a possibilidade e necessidade de resgatar uma visão de
mundo dentro da qual o termo desenvolvimento é empregado de modo plenamente
objetivo. Isto é, buscamos defender a possibilidade de formulação de uma teoria
do desenvolvimento autenticamente ontológica e definir de modo mais preciso o
sentido do termo desenvolvimento dentro dessa perspectiva
Na segunda, buscamos oferecer um panorama
geral da forma como o desenvolvimento é encarado no âmbito da ciência
econômica. Diferentemente do que pode parecer à primeira vista, o apanhado
realizado nessa segunda seção não tem como objetivo avaliar se as teorias do
desenvolvimento, conhecidas por interpretar os problemas dos países
subdesenvolvidos, produzem ideias melhores ou piores quando comparadas umas com
as outras. Ao contrário, esperamos demonstrar, através da identificação de
elementos teóricos comuns, que as teorias sob análise encontram-se no interior
do amplo conjunto de formulações ao qual se pretende dirigir uma crítica
conjunta, fundamentada no arcabouço teó- rico da primeira seção e apresentada
na conclusão geral do artigo.
Por uma teoria ontológica do desenvolvimento
Não é de se estranhar que um autor polêmico
como Marx suscite ainda hoje tantas releituras e interpretações, dos mais
variados tipos e nas mais diversas áreas, desde aquelas decididas a apontar
inconsistências e incorreções teóricas, até as que buscam, a partir de um
resgate, avançar em pontos pouco explorados pelo autor, passando ainda pelas
tentativas de sistematização (pretensamente isentas) geralmente encontradas em
manuais e/ou livros-texto. Em uma inspe- ção rápida desse material, podem ser
encontradas algumas leituras pertinentes (embora nem sempre corretas) e outras
insustentáveis diante de um exame cuidadoso da obra do autor. Particularmente
no que diz respeito à temática do desenvolvimento, uma leitura bastante
difundida é aquela que atribui ao autor uma noção de desenvolvimento associada
ao trânsito inexorável por etapas históricas bem definidas. De acordo com essa
concepção, portanto, Marx estaria apresentando a história humana como uma
sucessão de modos de produção (movida pelas contradições que se estabelecem
entre forças produtivas e relações de
produção, ou entre base econômica e superestrutura), cujo fim, ou estágio
último, seria o comunismo (independentemente da forma como este é concebido)2 .
Perspectivas desse tipo buscam amparo, por
exemplo, em trechos do prefá- cio ao Para
a Crítica da Economia Política, onde Marx (1982, p. 26) fala de “rela- ções
de produção [...] que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento
das [...] forças produtivas materiais”, ou ainda em trechos do conhecido
prefácio à primeira edição de O Capital,
onde Marx utiliza por diversas vezes o termo desenvolvimento, geralmente em referência aos casos inglês e alemão
(tomados ambos, especialmente o primeiro, como “laboratórios de investiga-
ção”). Nesse particular, Marx (2002, p. 16) faz afirmações como “o país
desenvolvido não faz mais do que representar a imagem futura do menos
desenvolvido”, ou mesmo, “uma nação deve
e pode aprender de outra. [...] não pode ela suprimir, por saltos ou por
decreto, as fases naturais de seu desenvolvimento” (Ibidem, pp. 17-18). Nas
passagens mencionadas, portanto, Marx estaria comunicando aos conterrâneos
alemães que o futuro de seu país poderia ser conhecido diretamente pelo exame
do passado de um país mais desenvolvido: a Inglaterra. Como sintetizado na
expressão tomada de empréstimo pelo autor das Sátiras de Horácio: “Quid rides? Mutato nomine, de te fabula
narratur”3 .
Ainda que o emprego da palavra desenvolvimento
nas passagens supracitadas tenha alimentado polêmicas, é possível encontrar
inteligibilidades bastante diversas da questão dentro do mesmo ambiente
teórico. Uma interpretação particularmente instigante encontra-se no trabalho
póstumo do filósofo marxista G. Lukács (1979). Considerando o conjunto da obra
e o sentido geral da teoria social marxiana, Lukács propõe que, com a palavra
desenvolvimento, Marx tem por referência o aumento objetivo da complexidade
como elemento regulador da dinâmica de funcionamento de objetos estruturados ao
longo do tempo (Ibidem, p. 54). Ou seja, “uma dada estrutura (totalidade) é
objetivamente superior, ou mais desenvolvida, do que outra estrutura da mesma
espécie caso seja constituí- da por um maior número de componentes específicos,
ou pelo mesmo número de componentes mais complexos” (Medeiros, 2013, p. 95).
Tomando exclusivamente nossa condição de seres
naturais e o critério acima apresentado, podemos dizer, por exemplo, que mesmo
o mais deplorável dos seres humanos é mais desenvolvido que um animal de
estimação (por maior que seja a estima pelos últimos). Se a sociedade é
entendida como uma totalidade composta de vários complexos, complexamente
articulados, o mesmo tipo de análise pode ser a ela aplicada. E, assim como no
caso anterior, proferir senten- ças a respeito do desenvolvimento da sociedade
significa falar sobre o grau de desenvolvimento/complexidade de suas esferas
constitutivas: economia, polí- tica, artes, direito, religião etc.
Assim, em um nível ainda bastante elevado de
abstração, podemos resgatar a descrição oferecida por Marx sobre a sociedade em
geral e aquelas determinações que são comuns a todas as épocas
(independentemente das condições históricas específicas). Nesse caso, o aumento
no grau de complexidade poderia ser traduzido no crescimento da sociabilidade
em sentido extensivo (aumento da quantidade de componentes predominantemente
sociais como elementos mediadores da vida em sociedade) e/ou intensivo
(crescente complexidade dos componentes já existentes), tendência essa que Marx
costumava caracterizar como recuo das barreiras naturais. Sobre as tendências
que regulam a dinâmica de funcionamento da sociedade, Lukács (2007, pp.
237-238) menciona ainda o aumento das forças produtivas do trabalho (ou seja, a
diminuição do tempo de trabalho necessário à produção e reprodução das
condições de vida humana) e a formação do gênero humano, resultado das
“ligações quantitativas e qualitativas cada vez mais intensas entre as
sociedades singulares originalmente pequenas e autônomas” (Ibidem).
No caso da sociedade em forma especificamente
capitalista, desenvolvimento significa, seguindo a mesma lógica, a operação das
leis que emanam da organização própria da economia regida pelo capital em sentido
extensivo (i.e., para uma porção mais ampla do globo, submetendo uma quantidade
maior de formações sociais e seres humanos) e/ou intensivo (comandando momentos
mais amplos da convivência social, como a atividade artística, esportiva, rela-
ções afetivas etc.). O trânsito desde um estágio mais baixo de desenvolvimento
para um estágio mais alto significa, portanto, a predominância mais ampla da
lógica capitalista na existência social (e não a passagem do pior ao melhor,
como quer que esses estados sejam definidos).
Se essa é, de fato, a maneira como Marx
concebeu o desenvolvimento, então o desenvolvimento de que fala em O Capital é
o desenvolvimento do seu objeto de análise (a sociedade capitalista, cuja
dinâmica é dominada por sua economia, como procura demonstrar a obra). Ademais,
o fato de que Marx tenha procurado capturar a essência desse desenvolvimento
mediante o enunciado de leis de tendência revela, por um lado, que o autor tem
plena consciência de que o processo de desenvolvimento comporta histórias
(i.e., trajetórias concretas, efetivas) bastante diferenciadas. Isso porque leis
de tendências não são afirmações sobre sequências regulares de eventos, mas sim
proposições sobre a capacidade causal de um determinado objeto do mundo, que
pode ser exercida sem que os fenômenos causados se manifestem (em virtude da
operação de tendências contrarrestantes). Naturalmente, isso confere à análise
de Marx um caráter post festum, não preditivo. Por outro lado, a caracterização
do processo de desenvolvimento mediante o enunciado de leis de tendência
nitidamente revela o reconhecimento do caráter não-teleológico da história em
seu conjunto. Ainda que Marx destaque a teleologia como o aspecto distintivo da
práxis humana, ele simultaneamente caracteriza a dinâmica da sociedade como o
resultado da articulação espontânea, não-teleológica dessas práticas.
Com essas considerações, torna-se possível
retomar as passagens de Marx citadas no início dessa introdução, especialmente
aquelas que tratam da relação entre Inglaterra e Alemanha. À luz da
interpretação aqui defendida, pode-se sugerir que Marx considerava a Alemanha
um país capitalista, mas com um grau de penetração do capital na vida social
como um todo relativamente limitado em comparação com a Inglaterra. Por esse
motivo afirma que “além dos males modernos, oprime a nós alemães uma série de
males herdados, originários de modos de produção arcaicos, caducos, com seu
séquito de relações políticas e sociais contrárias ao espírito do tempo. Somos
atormentados pelos vivos e, também, pelos mortos. Le mort saisit le vif. [O
morto tolhe o vivo]” (Marx, 2002, pp. 16-17).
Um indício claro desse raciocínio também pode
ser encontrado na afirma- ção de que a Alemanha é menos desenvolvida que a
Inglaterra por não contar com uma regulação jurídica das relações entre capital
e trabalho, isto é, com uma estrutura jurídica compatível com a produção
capitalista (ou ainda, com “rela- ções de produção” correspondentes à “etapa
determinada de desenvolvimento das [...] forças produtivas materiais”). Mais do
que isso, ao afirmar que a Alemanha se desenvolveria como a Inglaterra, Marx
não estava falando de eventos e fenômenos históricos concretos, mas sim do
surgimento, naquele país, de um terreno favorável à operação das leis
(econômicas) que caracterizam e governam a sociedade capitalista.
Em suma, a análise aqui sugerida nos permite
afirmar que estudar o desenvolvimento capitalista, desde uma perspectiva
marxista, significa (1) ter consciência da processualidade que caracteriza esse
sistema, (2) apreender as leis gerais de movimento da sociedade em geral e em
forma especificamente capitalista e (3) conhecer as condições concretas de
manifestação de tais leis. Nesse sentido, independentemente das consequências
dessas leis gerais e de suas condições concretas (sejam elas detestáveis ou
adoráveis), o que importa para a aná- lise do desenvolvimento capitalista em si
é saber se, na passagem de um período a outro, o funcionamento do capitalismo
tornou-se mais ou menos adequado à lógica interna do capital.
Dentro dessa perspectiva, portanto, podemos
dizer que o capital é tanto mais desenvolvido, quanto mais ampla a sua atuação.
Ou seja, por mais contraintuitivo que pareça, o fato de o capital ampliar seu
alcance territorial (tendência à formação do mercado mundial), penetrar nas
mais distintas esferas da vida social (como, por exemplo, as artes, esportes,
relações familiares, de afeto etc.) e atuar em um número maior de setores
(como, por exemplo, aqueles originalmente conduzidos pelo Estado, nos quais a
lucratividade é relativamente diminuta e o retorno é mais demorado),
imprimindo, em todos esses casos, a sua lógica de funcionamento, significa que
o capital se desenvolveu (Marx, 2011, p. 438).
Por fim, temos clareza de que essa não é a
forma como as teorias do desenvolvimento analisam o capitalismo. Como
pretendemos demonstrar adiante, em lugar do desenvolvimento em si da sociedade,
tais teorias em geral se atêm a determinadas expressões empíricas, utilizadas
como critério para julgar o desenvolvimento capitalista como bom ou ruim. No
primeiro caso, de julgamento positivo, as teorias aparecem não raramente como
apologia do capital. No segundo, de julgamento negativo, as teorias soam como
uma denúncia sobre o caráter desumano do capital (esquecendo, por vezes, que o
desenvolvimento capitalista não tem sentido humano!).
Teorias do desenvolvimento: por uma crítica
ontológica
Uma vez apresentado o sentido geral da teoria ontológica do desenvolvimento
aqui defendida, dedicamos a segunda seção do presente trabalho à inspe- ção
crítica daquelas formulações que, no âmbito da ciência econômica, buscaram dar
um tratamento mais refinado à temática: as chamadas teorias do desenvolvimento.
Ainda que, passando em revista a evolução do pensamento econômico, seja possível
encontrar incontáveis referências à questão do desenvolvimento, tomamos como
ponto de partida as formulações produzidas nos anos 1940/1950, momento no qual
se registra o nascimento da Economia do Desenvolvimento como uma disciplina
relativamente autônoma e especificamente dedicada à temática.
Esse período, que coincide com o fim da
Segunda Guerra Mundial, foi marcado por uma série de reorientações
(especialmente no plano político-ideológico) e transformações significativas na
configuração mundial (em virtude das inúmeras descolonizações e revoluções),
que oferecem importante auxílio à compreensão das principais características
daquele conjunto teórico. Um aspecto comumente ressaltado, e recorrentemente
utilizado como critério para reunião dessas teorias em um mesmo grupo, diz
respeito ao fato de todas compartilharemuma mesma preocupação: diante do
reconhecimento de que os diferentes países sustentam trajetórias históricas de
crescimento distintas, as teorias do desenvolvimento são identificadas como aquelas
que se ocupam de explicar a existência dessas trajetórias particulares e
sugerir possíveis soluções para os “menos favorecidos” (ou subdesenvolvidos).
O aspecto geralmente utilizado para distinguir
essas teorias, portanto, é a preocupação com a ausência de desenvolvimento, ou
seja, com o subdesenvolvimento – termo que, como indica a própria etimologia da
palavra, é normalmente utilizado para designar uma condição de baixo grau (ou
mesmo ausência) de desenvolvimento. Nesse período, passaram a ser chamadas de
subdesenvolvidas aquelas regiões materialmente menos favorecidas (também
conhecidas como Terceiro Mundo), que não foram capazes de acompanhar determinado
padrão de desenvolvimento socioeconômico, atribuído aos países capitalistas
pioneiros no processo de industrialização (também conhecidos como Primeiro
Mundo).
Apesar da diversidade de teorias que marca
esse período de grande efervescência do debate sobre desenvolvimento, algumas
características gerais ainda podem ser identificadas. Em primeiro lugar, o
desenvolvimento é tomado como sinônimo de aumento da riqueza, medida pela renda
per capita (acompanhado, em alguns casos, da noção de que esse aumento de
riqueza deve ser capaz de gerar melhorias nas condições de vida da população).
Consequentemente, por contraposição, o subdesenvolvimento é associado à baixa
renda per capita (e, por vezes, à incapacidade de garantir condições dignas de
vida para a população). Além disso, o que se observa nesse período é a
predominância da ideia de que o desenvolvimento deve ser promovido através da
industrialização. Assim, utilizando uma combinação de argumentos teóricos (de
inspiração clássica, keynesiana e/ou schumpeteriana) e históricos (amparados
nas experiências bem sucedidas de industrialização da Europa ocidental, Estados
Unidos e União Soviética), essas teorias procuram defender e justificar a
necessidade da industrialização.
Por outro lado, as principais divergências
entre as teorias clássicas do desenvolvimento giram em torno de dois pontos
fundamentais. O primeiro, diz respeito aos determinantes do subdesenvolvimento
e, portanto, à tentativa de explicar a baixa renda per capita – nesse caso, é
possível observar que, enquanto algumas teorias apontam a baixa poupança e
ausência de recursos como o determinante em última instância do
subdesenvolvimento, outras acreditam que se trata apenas de uma má utilização
dos recursos disponíveis. O segundo ponto refere-se à estratégia de
industrialização defendida pelas diferentes teorias (mais ou menos intensiva em
capital, com ou sem intervenção do estado, equilibrado ou desequilibrado etc.).
Naquele contexto, portanto, as teorias do
desenvolvimento surgem como formulação científica de compreensão e
administração da dinâmica social capitalista, consolidando o argumento segundo
o qual, somente através deste expediente, seria possível promover uma
convergência (ou, no mínimo, uma aproximação) entre as trajetórias de
crescimento das diferentes nações (ou conjunto de nações). Ou seja, tratava-se
de transformar o progresso presumidamente automá tico que caracteriza esta
sociedade num projeto presumidamente dirigido (pelo Estado).
Pode-se dizer que esta foi a visão dominante
até meados dos anos 1970, quando, acompanhando a crise econômica que se
espalhou pelo mundo durante esta década e a seguinte, a pretensão de dirigir o
capitalismo entrou em colapso. Como reconhecido por diversos comentadores (e
mesmo por alguns teóricos do desenvolvimento), portanto, a crise dos anos 1970,
aliada à posterior ruína do socialismo real, refletiu-se inicialmente em uma
crise para a disciplina, seguida de substantivas reorientações.
Em primeiro lugar, a crise na disciplina
assume a forma de um crescente ceticismo quanto à possibilidade de superação do
subdesenvolvimento e promoção da tão almejada convergência da riqueza das
nações. Assim, as décadas de 1960 e 1970 são marcadas pelo surgimento de
inúmeros trabalhos questionando a possibilidade de realização do ideal de
desenvolvimento compartilhado pelas concepções “clássicas” do desenvolvimento,
mesmo entre autores profundamente identificados com aquelas teorias. No caso
latino-americano, por exemplo, é bastante emblemática a inflexão ocorrida no
âmbito da CEPAL e o aparecimento do conjunto de formulações conhecido como
teorias da dependência – que, apesar da não homogeneidade, compartilham o
entendimento de que o sistema econômico mundial, por sua própria constituição,
produz desenvolvimento de alguns às custas do subdesenvolvimento de outros.
Por outro lado, observa-se o surgimento de
toda uma nova literatura decidida a provar que o fracasso na promoção do
desenvolvimento não deriva da impossibilidade de realização do projeto em si,
mas das estratégias adotadas para promovê-lo (especialmente aquelas focadas na
industrialização com interven- ção do Estado na economia). Na verdade, esse
expediente crítico pode ser visto como reflexo de uma mudança mais ampla no
plano político-ideológico, marcada pelo enfraquecimento do keynesianismo e
ressurgimento da ideologia liberal (renovada sob a roupagem do neoliberalismo).
Nesse sentido, além da tentativa de demonstrar os equívocos das estratégias de
desenvolvimento baseadas na intervenção e no planejamento, as principais
contribuições nesse campo entendem que a resolução de problemas característicos
dos países subdesenvolvidos depende, fundamentalmente, da ampliação da
liberdade de mercado.
Finalmente, esse contexto também é marcado
pelo surgimento de teorias que acreditam que o problema do desenvolvimento não
está no seu caráter “mitológico” ou nos equívocos estratégicos, mas na própria
definição de desenvolvimento. Assim, embora diversos autores continuem a tratar
o desenvolvimento econômico como sinônimo de crescimento do produto – como pode
ser visto, por exemplo, nos novos modelos de crescimento que utilizam aparatos
matemá- ticos e estatísticos cada vez mais sofisticados –, ganha força durante
esse período a perspectiva segundo a qual o desenvolvimento não pode ser
entendido como sinônimo de crescimento do produto.
Uma reorientação bastante significativa no
debate sobre desenvolvimento, portanto, está relacionada à alteração mais
profunda na noção de desenvolvimento. Com a constatação de que o processo de
intensa industrialização do período anterior, além de produzir evidentes danos
ambientais, não foi capaz de conduzir a uma situação considerada
suficientemente igualitária e promover a desejada convergência da riqueza das
nações, novas dimensões foram sendo progressivamente incorporadas à ideia de
desenvolvimento, que se torna mais “fragmentada”: não bastaria mais falar
naquele “desenvolvimento econômico” medido somente em termos da produção
nacional (preferencialmente a produção per capita, incapaz de revelar as
desigualdades distributivas) e que teria como meta diminuir as disparidades de
renda entre as nações, mas de um desenvolvimento que é sustentável em sentido
amplo, ou seja, baseado em uma sustentabilidade física (ecológica), econômica
(de durabilidade ao longo do tempo) e social (inclusiva).
Além da incorporação das novas temáticas
(especialmente da equidade e da sustentabilidade) no debate sobre
desenvolvimento, é possível perceber também que a derrocada do “socialismo”
real fez praticamente desaparecerem as discussões sobre o caráter histórico do
capitalismo e as possibilidades de pensar o desenvolvimento para além dos
marcos desse modo de produção. O resultado é que, nas formulações mais
recentes, o grau de confiança no poder dos mercados e do Estado passa a ser o
alvo exclusivo das disputas. Ou seja, enquanto as teorias dominantes sustentam
a precedência do irrestrito funcionamento do mercado sobre o dirigismo estatal
(sem ignorar a eventual necessidade do Estado, especialmente na garantia do bom
funcionamento dos mercados), as teorias heterodoxas defendem uma participação
mais ativa do Estado (sem negar, no entanto, a importância do mercado forte). O
debate, enfim, gira em torno do grau de intervenção do Estado necessário para
objetivar a sociedade projetada pelas diferentes teorias do desenvolvimento.
Conclusão
Como buscamos ressaltar ao longo da seção
anterior, as teorias do desenvolvimento possuem diferenças e particularidades,
tanto nos diagnósticos, quanto nas prescrições, que não podem ser ignoradas.
Diante dessa caracterização geral, portanto, não podemos deixar de reconhecer
que uma das dificuldades de tomar as teorias do desenvolvimento como objeto de
estudo reside justamente na diversidade de formulações, seja essa diversidade
determinada pelo fato de terem sido produzidas em contextos históricos muito
distintos ou pelo fato de carregarem consigo orientações teóricas diversas
(liberal, keynesiana, schumpeteriana etc.).
Apesar dessa diversidade, observamos que a
análise do “desenvolvimento” envolve, recorrentemente, a eleição de
determinados critérios e parâmetros (“empiricamente observáveis”) que permitam
quantificar a condição de países ou regiões em momentos diversos de sua
história. Além disso, é normalmente com base na extrapolação de um desses
critérios que se afirma ou nega a superioridade de povos e/ou países com
relação a outros. Por fim, o conceito de “desenvolvimento” é tratado, via de
regra, como um juízo de valor subjetivo: ou seja, o “desenvolvimento” é visto
como algo bom, viável e desejável (e que, portanto, deve ser promovido) e a sua
ausência como algo ruim (e que, seguindo a mesma lógica, deve ser superado).
Além disso, a inspeção crítica dessas teorias
é capaz de revelar que todas, sem qualquer exceção digna de nota, tomam o
capitalismo como pressuposto de suas formulações. Considerando, por exemplo, a
convergência em torno da redução do desenvolvimento ao “crescimento do
produto”, só episodicamente rompida, fica bastante nítido o modo como as
teorias do desenvolvimento projetam sobre o passado e sobre o futuro as formas
de riqueza e trabalho que são específicas do capitalismo, sem jamais indagar
quais são os pressupostos objetivos de um trabalho que adquire esse caráter de
permanente expansão. Com isso, as teorias não apenas naturalizam processos
históricos altamente complexos, não apenas se apresentam como instrumentos a
serviço dessa história “naturalizada”, mas também, ao lhe fornecer
inteligibilidade, comparecem objetivamente como formas de consciência
indispensáveis à sua reprodução. Comparecem, portanto, como a ciência deste
desenvolvimento.
Mesmo as teorias usualmente encaradas como
teorias “críticas” (ou seja, aquelas capazes de reconhecer problemas associados
à dinâmica capitalista, especialmente seu caráter “desumano”), acabam por
admitir acriticamente os limites impostos ao exercício teórico e prático pelo
objeto, em sua forma imediatamente dada. Nesse caso, percebemos que, apesar da
preocupação “humanitária” assegurar um acento crítico, essas teorias
hipostasiam a forma de trabalho correspondente a essa forma de sociedade e
podem, na melhor das hipóteses, almejar uma “organização mais ‘humana’ do
trabalho no capitalismo” (Duayer, 2010, p. 2).
Em síntese, para empregar a expressão
difundida por Duayer, podemos dizer que se trata, quando muito, de uma crítica
positiva do desenvolvimento capitalista. Nas palavras do autor:
A
crítica positiva, como se sabe, toma o mundo tal como ele se apresenta como um
dado insuperável, incontornável. E é nesse quadro de um mundo por princípio
inalterável em sua estrutura e constituição essencial que a crítica positiva
comparece, primeiro descrevendo o mundo – positivamente – e, segundo, em
conformidade com tal descrição, prescrevendo as atitudes e práticas possíveis
dos sujeitos. E a crítica positiva, é preciso não se iludir, pode ser de fato
crítica à sua maneira. Pode se insurgir sinceramente contra as infâmias desse
mundo incontornável. E mobiliza instrumentos teóricos sempre mais sofisticados
para consertar os erros do mundo, ou para desentortar o mundo, como imaginava
fazer Quixote. E arregimenta paixões, sinceras paixões, sem as quais tais
instrumentos restariam inertes, para a reparação do mundo. Todavia, recorde-se,
a crítica positiva e as práticas que alimenta são sempre prisioneiras desse
mundo, do mundo imediato, anistórico (Duayer, 2010, p. 7).
Mas por que deveríamos recusar a noção de
desenvolvimento veiculada pela ciência econômica, uma noção que conduz à
identificação imediata de desenvolvimento com desenvolvimento capitalista? Em
primeiro lugar, admitamos que Marx esteja correto quando procura demonstrar que
o capitalismo não pode subsistir sem o exército industrial de reserva (isto é,
desempregados), que o capitalismo não pode prescindir da separação dos seres
humanos em classes sociais (ou seja, da desigualdade), que nós não temos como
controlar, mesmo pela ação do Estado, a dinâmica capitalista (isto é, que
estamos subordinados à possibilidade de crises e de um uso destrutivo da
natureza). Se esse argumento faz sentido, e nós estamos presos ao
desenvolvimento capitalista, então nossa única alternativa seria desenvolver
uma teoria da conformação universal, e, naturalmente, da administração da
calamidade.
Em segundo lugar, ainda partindo da premissa
de que Marx tinha razão, se o desenvolvimento capitalista envolve por
necessidade mazelas sociais e ecoló- gicas, seria impossível que, junto às
mazelas, não emergissem formas de consciência em diversos níveis (cotidiano,
filosófico, científico etc.) que se ocupam dessas mazelas, tanto no sentido de
compreender suas causas, como no sentido de tratá-las com práticas. Se as
mazelas são mazelas em algum sentido, elas reclamam remédio e as teorias que
confundem desenvolvimento capitalista e desenvolvimento enquanto tal tratam de
oferecê-los. Então, no fundo, essas teorias não são apenas teorias, são ideias
necessárias de um mundo que produz mazelas.
No caso de Marx, bem ao contrário, percebemos
que a crítica dirigida ao capitalismo pode ser mais bem caracterizada como uma
crítica negativa: “crí- tica do trabalho no capitalismo, crítica do trabalho
como atividade socialmente mediadora, ou seja, crítica da sociabilidade fundada
no trabalho” (Ibidem).Em outras palavras, trata-se de uma crítica que
reconhece, desde o início, o caráter histórico do seu objeto de estudo. De uma
crítica que indaga sobre as condições históricas que fizeram emergir esse
objeto. Uma crítica que procura, na organização interna do objeto, na forma
como ele veio a se constituir estruturalmente, as condições do seu
desenvolvimento no tempo e no espaço. Uma crítica que, por fim, expressa esse
movimento causalmente determinado em leis de tendência.
Uma crítica como essa não tem qualquer
compromisso a priori com o seu objeto de estudo, a sociedade capitalista, pois
não o toma por antecipação como uma forma de existência insuperável, que, portanto,
deve ser reparada ou amparada a qualquer custo quando sua linha evolutiva geral
demonstra-se desumana (ou ameaçadora em termos ecológicos). Ao contrário,
justamente por não perder de vista a transitoriedade histórica possível dessa
formação social, por um lado, e por demonstrar o caráter necessário de sua
desumanidade, por outro, é que pode converter o conhecimento de suas leis de
tendência numa proposta de prá xis orientada em favor da transição concreta
para uma sociedade dotada de outra dinâmica evolutiva, de outra linha de
desenvolvimento interno.
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política, L.I., v.1 e v.2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
MARX, Karl. Para a crítica da Economia
Política. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
MEDEIROS, João Leonardo. A Economia diante do
horror econômico: uma crítica ontológica dos surtos de altruísmo da ciência
econômica. Niterói: EDUFF, 2013.
POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação
social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx. São Paulo: Boitempo,
2014.
Notas
1. Este artigo sintetiza algumas das
principais conclusões da tese de doutorado intitulada Desenvolvimento em Marx e
na teoria econômica: por uma crítica negativa do desenvolvimento capitalista,
apresentada ao programa de pós-graduação em Economia da UFF em agosto de 2011.
Agradeço os comentários feitos na ocasião pelos membros da banca Mario Duayer,
Marcelo Carcanholo, Niemeyer Almeida Filho e Paulo Nakatani. Meus
agradecimentos especiais ao orientador e amigo João Leonardo Medeiros, pela
orientação dedicada, trabalho árduo de revisão e incontáveis sugestões. Não
poderia deixar de lembrar, no entanto, que quaisquer equívocos ou omissões são
de minha inteira responsabilidade.
2. Uma síntese desta leitura, e das principais
controvérsias por ela suscitada, pode ser vista em Harris (1983).
3. “Está rindo do quê? Em outras palavras, a
fábula fala de ti”.