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Karl Marx ✆ Michael Schaack
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Michael Heinrich |
O que é dinheiro? Essa questão dificilmente tem qualquer significação no
cotidiano dos mercados. O que importa é que ele exista em quantidade suficiente.
As teorias econômicas burguesas reduzem o dinheiro às suas funções econômicas.
A onipresença do dinheiro é crucial e pressupõe certas condições. Ademais, a
crítica dos mercados financeiros fica incompleta quando se suprime as relações
sociais fundamentais que se encontram reificadas no dinheiro. “O dinheiro faz o mundo girar.” Essa afirmação é confirmada
em todos os níveis da vida cotidiana na sociedade capitalista: se a questão em
vista for comprar pães para o café-da-manhã, investir em grandes negócios,
aplicar em fundos de pensão, o problema relevante vem a ser sempre se há
dinheiro suficiente, senão como obter mais dele. O que é surpreendente, porém,
é que dificilmente o dinheiro tem qualquer papel na teoria neoclássica, a qual
detém plena dominância nas universidades e entre os assessores econômicos
governamentais.
Para a escola neoclássica, que provê os fundamentos teóricos
das políticas neoliberais, o dinheiro é simplesmente um meio de circulação, um
recurso prático que simplifica as trocas e é usado como unidade de medida. A
escola neoclássica nega ao dinheiro qualquer relevância intrínseca: somente as
quantidades “reais”, as quantidades de bens e serviços que são produzidos e
trocados, investidos e consumidos, são decisivos para ela. A esfera monetária é
vista pela escola neoclássica como um véu que encobre a esfera “real” dos
produtos físicos.
Este véu pode produzir dificuldades de curto prazo como
resultado de má administração (por exemplo, quando o banco central emite
dinheiro demais, inflacionando a economia), mas no longo prazo, as relações
“reais” subjacentes se acertam por si mesmas. Quando se permite que os mercados
operem sem restrições – assim reza a lição da escola neoclássica dominante – um
“ótimo” social (máximo produto ao mínimo preço) deve surgir.
Para o keynesianismo, ao qual atualmente se atribui um papel
menor na teoria econômica acadêmica, o dinheiro é muito mais importante do que
para a escola neoclássica. Ele não é reduzido à sua função de meio de
circulação; ao invés, destaca-se a sua capacidade de funcionar como um meio de
preservação do valor para, assim, ligá-lo as condições fundamentais de
insegurança na economia de mercado: o dinheiro funciona como um porto seguro
principalmente contra um futuro incerto. Se a insegurança é crescente, de
acordo com o argumento keynesiano, mais dinheiro é mantido “líquido”, isto é,
famílias e empresas gastam menos e menos estão inclinadas a fazerem
investimentos de longo prazo; preferem não perder acesso ao dinheiro no curto
prazo. Isto leva ao crescimento da taxa de juros e à redução do investimento, o
que produz queda da renda e crescimento do desemprego. O keynesianismo não
reconhece a existência de um processo automático capaz de remediar a crise, daí
que defenda a necessidade da intervenção estatal.
A apreensão do dinheiro por parte das correntes keynesianas
é mais diferenciada do que aquela da escola neoclássica; comum a ambas, porém,
é a ampla tendência para reduzir o dinheiro a uma simples função essencial.
Para ambas essas teorias, o dinheiro é acima de tudo uma ajuda ao funcionamento
econômico – pouco importante segundo a escola neoclássica, mas bem importante
conforme o keynesianismo. A questão de saber o que é o dinheiro, e como ele
está ligado a um modo específico de socialização inerente à sociedade produtora
de mercadoria, nunca é mesmo posta.
Dinheiro –
meramente um instrumento privilegiado?
Essa questão, porém, foi central no exame que Marx fez do
dinheiro. Várias correntes nos movimentos trabalhistas ingleses e franceses do
século XIX lutaram para reformar o capitalismo mudando o sistema monetário:
assim, para eles, a produção privada de mercadoria seria mantida, mas o
dinheiro seria substituído por cupons que denotavam horas trabalhadas ou por
certificados que davam direitos a bens (a semelhança das entradas de teatro).
Em contraste com esses esforços reformistas, Marx tentou mostrar que o modo de
produção burguês necessita de um meio de troca particular, o dinheiro, o qual
por sua própria natureza não é uma coisa inócua como uma entrada de teatro.
Os produtores privados e individuais de mercadoria estão
ligados entre si por meio da divisão societária de trabalho, mas os seus
produtos adquirem o caráter social somente retrospectivamente, a saber, quando
eles realizam os seus valores no mercado. Numa sociedade baseada na troca, o
caráter social dos bens produzidos não consiste somente em sua capacidade de
satisfazer as necessidades das pessoas; os produtos devem manter uns com os
outros uma relação quantitativa de troca, devem possuir “valor” em adição ao
seu valor de uso.
Na sociedade burguesa, a riqueza se torna uma quantidade
abstrata: não consiste de uma multiplicidade de valores de uso e de amenidades,
mas, ao invés, consiste de “valor”. Mas o “valor” não pode ser apreendido por
meio da consideração de uma única mercadoria, pois ele existe somente na
relação entre as mercadorias. Ademais, o “valor” tem apenas uma expressão
limitada e local por meio da relação particular de uma mercadoria com outra. O
valor da mercadoria apenas pode obter uma expressão universal e socialmente
válida quando aparece incorporado numa forma independente de “valor” – isto é,
quando ele se representa numa coisa que, na relação com todas as outras
mercadorias, não figura simplesmente como mais uma mercadoria, mas como uma
expressão de “valor” por excelência. [1] Somente nessa situação pode uma
simples mercadoria afirmar o seu caráter de “valor” independentemente do seu
caráter concreto como valor de uso. A riqueza abstrata necessita de uma forma
material particular de existência – e o dinheiro é exatamente essa forma. Numa
sociedade baseada na troca de mercadorias, o dinheiro não é meramente um
instrumento mais ou menos importante; é necessariamente um meio de socialização
econômica.
Os produtores individuais de mercadoria não estabelecem as
suas relações sociais uns com os outros enquanto pessoas. Precisamente, porque
os indivíduos isolados desaparecem atrás de seus produtos, a sua coesão social
– num sentido bem literal – se torna reificada (em alemão: verdinglicht), ou
seja, é aprisionada numa coisa, ou seja, no dinheiro. O dinheiro não é
simplesmente – como a escola neoclássica mantém – uma simplificação do processo
de troca, a qual em princípio pode ser dispensada. Ao invés, o dinheiro é um
meio por meio do qual os produtores individuais e isolados de mercadorias
se relacionam e, assim, se conservam uns em relação aos outros.
Enquanto dinheiro, a coisa adquire propriedade social e
poder social. Marx apresenta essa qualidade “transcendental” da coisa como
fetichismo. E esse fetichismo não é meramente uma ilusão, uma espécie de “falsa
consciência”. Em verdade, na sociedade burguesa, o dinheiro possui o maior
poder. Porém, ele só possui esse poder devido às relações sociais específicas
que lhe estão subjacentes: os possuidores atomizados de mercadoria estabelecem
as suas relações sociais uns com os outros por meio dessa “coisa”, do dinheiro.
O dinheiro tem poder porque todos os atores sociais se relacionam com o
dinheiro como dinheiro, isto é, como uma representação independente de “valor”.
Assim que os indivíduos começam a agir como possuidores de mercadorias, que
trocam produtos, eles não têm outra possibilidade senão manter contato com o
dinheiro. Posto isso, note-se que o fetichismo contém de fato um aspecto
ilusório, pois o dinheiro parece ter um poder social que lhe é inerente. Mas,
de fato, esse poder é resultado de um processo social automático que escapa à
cognição usual das pessoas no dia-a-dia. O processo se consuma em seu próprio
resultado.
A produção de mercadoria é impossível sem a correlação entre
as mercadorias e o dinheiro. Por essa razão, há um importante limite para todo
projeto utópico; se alguém deseja a abolição do dinheiro, deve almejar também a
abolição do conjunto das relações societárias que o requerem. Não se pode ter
uma sem a outra.
Do dinheiro
ao capital
Se a totalidade do processo social de reprodução é mediada
pela mercadoria e pelo dinheiro, isto é, se a produção de mercadoria não está
restrita a existir em um nicho no interior de outro modo de produção (como foi
o caso, inicialmente, no período feudal da Europa Ocidental), então o dinheiro
adquire nova qualidade como capital. A incorporação autônoma de “valor”, por
meio da qual a socialização econômica da produção de mercadoria é realizada,
ela mesma se torna o fim principal da atividade econômica. Precisamente porque
o dinheiro é a encarnação da riqueza abstrata, a qual não está sujeita a
limites imanentes, ninguém nunca terá “suficiente” dele a sua disposição.
O comércio e a produção devem não apenas gerar dinheiro, mas
sim, eles devem gerar continuamente novas somas de dinheiro. A generalização da
produção de mercadorias é somente possível quando a própria produção é
transformada em produção capitalista, quando a multiplicação e o aumento da
riqueza abstrata se torna o fim direto da produção e todas as outras relações
sociais ficam subsumidas a esse fim. O “poder destrutivo do dinheiro”, o qual
foi objeto de muita crítica nos modos de produção pré-capitalistas (por muitos
autores da Grécia Antiga, por exemplo) está enraizada precisamente nesse
processo de capitalização da sociedade como resultado da generalização da
relação de dinheiro. As concepções de socialismo de mercado que almejam
abolir a produção capitalista, mantendo, entretanto, o mercado, a produção
mercantil e o dinheiro (por causa de sua “eficiência” na produção e na
inovação) enfrentam esse problema fundamental: como impedir a recapitalizacão
da sociedade sem inibir a “eficiência” do mercado.
A produção
capitalista e os mercados financeiros
Como a coesão social numa sociedade de troca mercantil é
estabelecida primariamente pelo dinheiro, este tem o poder de corromper essa
coesão: a “possibilidade da crise” – como Marx já notara no terceiro capítulo
de
O capital – surge com o dinheiro. Não apenas o dinheiro faz
a mediação das trocas no circuito mercadoria-dinheiro-mercadoria (alguém vende sua
própria mercadoria a fim de adquirir subsequentemente outra mercadoria), mas
ele permite a interrupção dessa mediação: uma venda sem o acompanhamento de uma
compra (isto é, o dinheiro obtido pela venda não é utilizado em nova compra)
produz uma ruptura na cadeia de reprodução. Assim que isso acontece, as
mercadorias produzidas não podem mais ser vendidas; a produção torna-se
limitada, entrando em estagnação. A consequência disso é, de um lado, capital
ocioso e, de outro, desemprego da força de trabalho. Uma série de
circunstâncias adicionais é necessária para que a mera possibilidade de crise
se desenvolva e se transforme numa crise real.
No marxismo tradicional, essas circunstâncias são observadas
primariamente nas próprias condições capitalistas de produção, por meio da “lei
tendencial da queda da taxa de lucro”. Em contraste, o dinheiro e o crédito tem
um papel secundário como “mero fenômeno de circulação”. Como resultado dessa
abordagem unilateral voltada para as condições da produção, perde-se de vista o
fato de que é impossível a produção de mercadoria sem dinheiro; a produção
capitalista não pode existir sem o crédito (assim como sem as formas evoluídas
tais como o dinheiro de crédito, a ações, os títulos etc.). O caráter flexível
da produção capitalista se deve precisamente ao fato de que a acumulação não
encontra limites nos lucros realizados nos períodos prévios de produção, mas
pode ser expandido muito além por meio do crédito; ora, isto implica a
possibilidade da superprodução.
Porém, o crédito é somente expandido (ou novas ações,
dependendo da situação, são emitidas) naqueles setores em que altos níveis de
lucro futuros são esperados. Nesse sentido, um forte elemento especulativo é
inerente ao sistema financeiro como um todo. Esse elemento especulativo é
reforçado adicionalmente por meio de instrumentos financeiros tais como as
opções (direitos de adquirir participações específicas a um preço
pré-determinado). Contudo, o elemento especulativo é inerente a todos os
aspectos da produção capitalista: um empreendedor nunca pode saber com plena
certeza se os seus produtos serão vendidos e a que preços, ou se os
investimentos que faz trarão o nível esperado de lucros no futuro. Assim, o
crédito e a especulação não são de modo algum condições externas que vem
atrapalhar uma produção capitalista que não vem a ser inerentemente
especulativa. Sem um setor financeiro especulativo, a produção capitalista é
impossível.
Não se trata somente de observar que essa correlação deveria
ser mais fortemente levada em consideração no campo da teoria da crise do que o
fora no campo do marxismo tradicional. Trata-se, ademais, de tema importante
para a crítica da globalização contemporânea. É comum que a critica se dirija
contra um capitalismo “sem freios” cujo poder destrutivo parece estar associado
a um sistema financeiro especulativo. Ora, o fato de o sistema financeiro
estabelecer padrões de lucratividade e de eficácia de custos para as empresas
individuais, dizer sobre como elas devem obter crédito e emitir ações, não é de
modo algum um fenômeno recente. Tradicionalmente, o sistema financeiro tem
exercido essa “função de controle”. O fato novo das últimas décadas é a
emergência de um sistema financeiro largamente internacionalizado, o qual
passou crescentemente a ditar os padrões internacionais de valorização do
capital.
Se o aumento da especulação é visto como a causa principal
das doenças do capitalismo, passa-se a recomendar mais regulação; e, assim, a
relação necessária entre o sistema financeiro e a produção capitalista é
velada. Desse modo – ao menos tendencialmente – passa-se a contrastar um
sistema capitalista “bom” com um “mau”, sendo este último um capitalismo
financeiro especulativo. Não está pré-determinado, de modo algum, a quantidade
e a qualidade da regulação necessária para controlar “efetivamente” os fluxos
de capital. Nesse sentido, as demandas dos críticos da globalização por mais
regulação não são necessariamente pouco realistas ou impossíveis de serem
introduzidas. Porém, pode-se duvidar de que essa regulação venha a suprimir os
piores aspectos do capitalismo. Mesmo num capitalismo altamente regulado, a
satisfação das necessidades e dos desejos, a eliminação das desigualdades
sociais, ou mesmo uma boa vida, não são objetivos próprios da atividade econômica.
Esta visa – isto sim – a valorização, a acumulação de riqueza abstrata – um fim
para o qual os seres humanos e a natureza são apenas meios – meios estes,
aliás, que estão sendo constantemente administrados para aquela finalidade seja
atingida.
Notas
[1] Isto é mostrado na seção “Forma do valor ou o valor de
troca” no primeiro capítulo de
O capital.
[2] Em
O capital, Marx mencionou que o mero produto é uma “coisa
sensível”, mas que ele se torna, enquanto mercadoria, uma “coisa sensível
suprassensível”.
Michael Heinrich é
cientista político e matemático. Foi professor convidado de ciência política na
Universidade de Viena e na Universidade Livre de Berlim. Atualmente é professor
de economia na Universidade de Ciências Aplicadas de Berlim. Editor da PROKLA (Jornal da ciência social crítica) e do site Oekonomiekritik, participa do
projeto MEGA 2, um monumental esforço internacional visando à publicação
das obras completas de Marx e Engels. É autor, entre outros, de Crítica da economia política: uma introdução,
Como ler O capital de Marx e Uma introdução aos três volumes d’O capital
de Marx.
Publicado
originalmente en alemán en Oekonomiekritik (Freiburg,
enero-febrero, 2002): “Ding mit
übersinnlichen Qualitäten | Geld als soziales Verhältnis” y luego en inglés
en MrZine: “A Thing with
Transcendental Qualities: Money as a Social Relationship in Capitalism”
(marzo, 2006).