Pedro Dalla Bernardina Brocco | O artigo propõe uma tentativa de diálogo com
a afirmação feita por Lacan segundo a qual Karl Marx teria sido o inventor do
sintoma. Para entender a afirmação de Lacan, a aposta será a de uma leitura
comparada de alguns textos de Freud e Marx, e seus respectivos comentadores, no
sentido de uma aproximação entre as obras de ambos, partindo dos seguintes
flancos: i) há uma ideia geral de “mal-estar” nos percursos de Marx e Freud?;
ii) em que medida a noção de “fetichismo” é trabalhada na obra dos dois?
Freud
é conhecido por seu texto tardio envolvendo o mal-estar na civilização, mas
Marx é conhecido por seus estudos sobre o fetichismo da mercadoria. O que não
se coloca num primeiro tempo, contudo, é o fato de Marx articular sua teoria
tendo em vista o mal-estar presente na Europa do século XIX, em que a pobreza
aparece sendo produzida artificialmente mediante a luta de classes, e que Freud
também trabalha com o conceito de fetichismo, relacionando-o à perversão.
Introdução ou A
primeira volta do parafuso
Lacan, ao dizer que Marx inventou o sintoma, coloca em cena
a passagem do feudalismo para o mundo burguês moderno, e de como nessa passagem
ocorre uma ruptura, uma inadequação entre os direitos e deveres universais
burgueses e a sua exceção. O fato de sempre haver uma subversão da
universalidade dos direitos burgueses é o fator constitutivo da realidade
burguesa moderna, e o sintoma é “um elemento particular que subverte seu
próprio fundamento universal, uma espécie que subverte seu gênero” (Žižek,
1996, p. 306).
Para Žižek, o método marxista da crítica da ideologia já é
sintomático, pois consiste em detectar um ponto de ruptura heterogêneo para um
dado campo ideológico, sendo que esta ruptura mesma é algo constitutivo e
necessário para que esse campo opere em sua forma fechada (ibidem). O que Žižek
quer dizer com isso? Retomemos por um momento a leitura de Sobre a questão judaica: é aqui que Marx reconhece, no prefácio dos
Manuscritos econômico-filosóficos,
que indicou, de modo bem geral, os primeiros elementos do seu trabalho
vindouro, que se inicia com os Manuscritos
(Marx, 2010a, p. 20).
Em Sobre a questão
judaica, escrito em 1843, publicado na primavera de 1844 no único número
dos Anais franco-alemães, Marx trava
uma discussão com Bruno Bauer acerca da emancipação dos judeus na Alemanha.
Bauer defende a tese de que o judeu deve se emancipar, tornar-se livre,
rompendo com sua “essência judaica”, situando a sua intervenção em uma região
meramente religiosa. Marx rompe com essa formulação teológica e observa que a
emancipação do judeu deve ser posta a partir da pergunta: qual é o elemento
social específico a ser superado para abolir o judaísmo? Observa que “a
capacidade de emancipação do judeu moderno equivale à relação do judaísmo com a
emancipação do mundo moderno” (Marx, 2010b, p. 55). Essa relação, para Marx,
resulta da posição especial assumida pelo judaísmo naquele (e ainda em nosso)
mundo escravizado. A sua virada consiste em observar o judeu secular real, o judeu
cotidiano, não o judeu sabático, como faz Bauer. Aí se coloca o problema que
Marx se propõe a desenvolver: qual é o
fundamento secular do judaísmo? E responde à própria pergunta: a necessidade prática, o interesse próprio.
E continua: qual é o culto secular do judeu? O negócio. Qual é seu deus
secular? O dinheiro (ibidem, p. 56).
Agora sim! A
emancipação em relação ao negócio e ao dinheiro, portanto, em relação ao
judaísmo prático, real, seria a autoemancipação da nossa época. Uma organização
da sociedade que superasse os pressupostos do negócio, portanto, a
possibilidade do negócio, teria inviabilizado o judeu. Sua consciência
religiosa se dissiparia como uma névoa insossa na atmosfera da vida real da
sociedade. Em contrapartida, quando o judeu reconhece que essa sua essência prática
é nula e coopera para sua superação, está cooperando, a partir de seu
desenvolvimento até o presente, para a emancipação humana pura e simples e se
voltando contra a suprema expressão prática da autoalienação humana. (Ibidem).
A interpretação deste excerto que aponta para um pretenso
antissemitismo de Marx é nada além de uma leitura ingênua e desatenta (ainda
que, sim, há aqueles que enxergaram no texto um desejo de destruição total dos
judeus – cf. a apresentação de Daniel Bensaïd, nesta edição, nas páginas 22 e
23).
Temos que enxergar esta formulação de Marx, ele próprio um
judeu pertencente a uma família tradicional de judeus na Alemanha, de forma
muito precisa: o que ele procura mostrar aqui é a explicação da existência de
uma religião, uma categoria, o judeu, a partir das práticas sociais da vida
burguesa concreta: o judeu seria uma espécie de exceção a um Estado sem
religião, que existe enquanto universal, igualitário,
que garante liberdades. Nesse caso, a
religião separada do Estado torna-se uma questão privada. Marx busca apreender
a cisão entre o judeu sabático e o judeu cotidiano a partir de um pano de fundo
que é o da cisão da modernidade: o desdobramento que se opera entre o Estado e
a sociedade civil, entre o homem e o cidadão, entre o espaço público e o
espaço privado, entre o bem comum e o interesse egoísta (Bensaïd, 2010, p. 25).
O judeu cotidiano aparece, portanto, como algo sintomático,
uma figura que concentra as características fundamentais do desenvolvimento do
capitalismo na ruptura entre o bem comum instaurado pelo Estado pós-Revolução
Francesa e o interesse privado. Marx observa que o Estado político pleno
constitui, por sua essência, a vida do gênero humano em oposição à sua vida
material (ibidem, p. 40). O Estado institui o homem enquanto ente genérico,
“membro imaginário de uma soberania fictícia, tendo sido privado de sua vida
individual real e preenchido com uma universalidade irreal” (ibidem, p. 41) –
aqui Marx antecipa intuitivamente a tríade lacaniana de Real, Simbólico e
Imaginário: o Estado institui um homem genérico, membro Imaginário, privado de
sua vida individual Real e preenchido com uma universalidade irreal Simbólica.
O Estado é um locus de primazia do nó borromeano (não sabemos o que é o Estado,
algo que está entre o imaginário e o simbólico, mas que se apresenta no real
dos corpos, com a burocracia, a polícia etc.).
Marx faz uma observação estritamente psicanalítica: “na sua
realidade mais imediata, na sociedade burguesa, o homem é um ente profano”
(ibidem). Esta observação surge logo após a comparação entre o Estado político
e a religião: a relação entre o Estado político e a sociedade burguesa é tão
espiritualista quanto a relação entre o céu e a terra – o Estado político
supera a antítese da mesma forma que a religião supera a limitação do mundo
profano, ou seja, o Estado é forçado a reconhecer a antítese, a produzi-la e a
deixar-se dominar por ela (a antítese seria, aqui, talvez, o nome para a luta
de classes).
Da mesma forma, a contradição que opera entre o homem
religioso e o homem político é a mesma que existe entre o bourgeois e o citoyen,
entre o membro da sociedade burguesa e sua pele
de leão política (ibidem, p. 41).
O homem, portanto, se emancipa politicamente da religião,
banindo-a do direito público para o direito privado. Ela não é mais o espírito
do Estado, mas o espírito da sociedade burguesa (Marx antecipa-se a Weber), a
esfera do egoísmo e essência da diferença.
O Estado moderno passa então a garantir a liberdade
religiosa, assim como a liberdade tout
court. A Constituição francesa de 1793 afirma que “a liberdade consiste em
poder fazer tudo que não prejudica a nenhum outro”. A aplicação prática do
direito humano à liberdade é, para Marx, equivalente ao direito humano à
propriedade privada. O direito à propriedade privada é, segundo Marx, ao
traduzir o artigo 16 da Constituição de 1793, o direito “de desfrutar a seu bel
prazer, sem levar outros em consideração, independentemente da sociedade, de
seu patrimônio e dispor sobre ele, é o direito ao proveito próprio”: é,
portanto, o “direito humano” de jouir (gozar)3 et de disposer à son gré de ses biens, de ses revenus, du fruit de son
travail et de son industrie (ibidem, p. 49).
Os três significantes que embasam toda a codificação
pós-revolucionária francesa, Marx os analisa, são liberté, égalité e sûreté. A
liberdade foi já exposta, é a propriedade privada. A igualdade vem exposta na
constituição de 1795: “a igualdade consiste em que a lei é a mesma para todos,
quer ela esteja protegendo, quer esteja punindo”. A segurança é o conceito
social supremo, o conceito de polícia, segundo o qual o conjunto da sociedade
só existe para garantir a cada um de seus membros a conservação de sua vida,
sua pessoa, seus bens, sua propriedade. É aqui que aparece da forma mais
paradoxal a ruptura entre o cidadão (citoyen) e o homem empírico (homme). Os
direitos são declarações para o homem e o cidadão – duas figuras que habitam o
mesmo corpo.
Mas Marx reconhecerá que tudo isso existe para a declaração
do citoyen como serviçal do homme egoísta,
quando vemos que a esfera em que o homem existe como ente comunitário é
inferiorizada em relação àquela em que ele se comporta como “ente parcial”
(ibidem, p. 50), e que o real não é o citoyen, mas o homem como bourgeois. Marx
dirá que o homem real só chega a ser conhecido na forma do indivíduo egoísta, e
o homem verdadeiro só na forma do citoyen
abstrato.
Aqui entramos em um ponto importante – talvez possamos
perceber o que Lacan chamou de invenção do sintoma na mudança do feudalismo
para o mundo moderno tal qual o conhecemos: nesta mudança, pela via da
revolução política, há a incidência de dois movimentos: emancipação política e
dissolução da sociedade antiga. A sociedade burguesa antiga possuía, nas
palavras de Marx, um caráter político imediato, ou seja, os elementos da vida
burguesa (a posse, a família, o modo de trabalho) eram elevados à condição de
elementos da vida estatal em formas bem delimitadas: suserania, estamentos,
corporações de ofício (ibidem, p. 51). Nessas formas, havia a determinação da
relação de cada indivíduo com a totalidade do Estado, sua natureza política,
ou, para Marx, sua relação de separação e exclusão dos demais componentes da
sociedade. Basta pensar na vida própria de uma corporação de ofício: é como se
houvesse sociedades particulares dentro da sociedade.
A revolução política proporcionou, assim, o desmanche do
conjunto de estamentos, corporações, guildas, privilégios, e outras expressões
da separação entre o povo e seu sistema comunitário (ibidem, p. 52). A revolução
política, nos dizeres de Marx, “superou o caráter político da sociedade
burguesa”, decompôs a sociedade burguesa em seus componentes mais simples, isto
é, os indivíduos, por um lado e, por outro lado, nos elementos materiais e
espirituais que compõem o teor vital, a situação burguesa desses indivíduos.
“A sociedade feudal foi dissolvida em seu fundamento, no homem, só que no tipo
de homem que realmente constituía esse fundamento, no homem egoísta” (ibidem).
Esse homem é dividido entre os homens e mulheres membros da
sociedade burguesa e, nesse sentido, apolíticos, que se apresentam como seres
humanos naturais dotados de direitos humanos naturais, e o homem egoísta seria
o resultado da dissolução da sociedade feudal. O problema aqui é situado por Marx
no seguinte sentido: “A revolução política decompõe a vida burguesa em seus
componentes sem revolucionar esses mesmos componentes nem submetê-los à
crítica” (ibidem, p. 53).
Assim, o parafuso vai sendo apertado: o trabalhador em seu
ofício cotidiano, mecanizado, obrigado a vender sua força de trabalho para
continuar vivendo,4 reduzido em sua condição de trabalhador abstratamente
considerado a uma mercadoria (Marx, 2010a, p. 35); o capitalista opera sob
essa lógica em situação também dividida, embora possa (e se force a) gozar em
sua posição privilegiada, não sabe exatamente o que está fazendo (a famosa
frase de Marx em O Capital), em suma: o parafuso vai sendo apertado, também, na
cabeça do monstro de Frankenstein.5