26/10/15

Neoliberalismo: Uma Análise marxista

Karl Marx ✆ Cássio Loredano
Alfredo Saad Filho   |   Este artigo examina criticamente a literatura marxista sobre o neoliberalismo. Ele descreve as quatro principais interpretações do neoliberalismo a partir de uma perspectiva marxista e examina os pontos fortes e limitações de cada uma delas. Estes incluem as abordagens do neoliberalismo como sendo, principalmente, um conjunto de idéias; um conjunto de políticas, instituições e práticas; um momento da luta de classes, e um sistema de acumulação. Ao examinar essas interpretações do neoliberalism o artigo destaca a vitalidade das contribuições marxistas para as ciências sociais, e examina como elas podem contribuir para as lutas sociais para superar o neoliberalismo como o atual modo de existência do capitalismo.

O neoliberalismo (também escrito como neo-liberalismo) desafia uma definição simples. Na literatura marxista, ele tem sido entendido de quatro maneiras distintas, porém intimamente relacionadas: como um conjunto de ideias inspiradas nas escolas econômicas austríaca e de Chicago e no ordoliberalismo alemão, e elaboradas sob a égide da Sociedade do Mont Pèlerin; como um conjunto de políticas, práticas e instituições inspiradas e/ou validadas por esas ideias; como uma ofensiva de classe liderada pelo Estado contra os trabalhadores e os pobres, em nome da burguesia em geral ou das finanças em particular; e como uma estrutura material de reprodução econômica, social e política, implicando que o neoliberalismo é o modo de existência do capitalismo contemporáneo ou um sistema de acumulação.

Essas distintas formas de conceptualizar o neoliberalismo são sintomá- ticas das diferenças de metodologia e de pontos de vista no marxismo contemporâneo, das relações íntimas entre o marxismo e as abordagens não-marxistas nas ciências sociais, e da complexidade do próprio neoliberalismo. Do ponto de vista marxista, essas tensões analíticas são sentidas em três níveis interligados.

Foto: Alfredo Saad Filho
Em primeiro lugar, todas as experiências neoliberais compartilham traços importantes. Alguns são relativamente abstratos e universais, como o poder crescente das finanças e as limitações cumulativas da democracia política, enquanto outros são relativamente concretos e específicos a cada país, como as privatizações e a disseminação de organizações não-governamentais em áreas que, anteriormente, pertenciam ao domínio do Estado. Embora essas características comuns impliquem que o neoliberalismo não possa ser adequadamente descrito na esfera meramente conjuntural, elas não são suficientemente gerais ou historicamente distintivas para definir um novo modo de produção. Inevitavelmente, portanto, análises do neoliberalismo perpassam distintos níveis de abstração dentro do capitalismo, incluindo (algum tipo de compreensão de) conceitos bá- sicos da teoria marxista como a mercadoria, o valor e a força de trabalho, até a descrição da conjuntura, passando por entendimentos específicos da explora- ção, das classes, da concorrência, da formação dos preços, do Estado e do gerenciamento da acumulação, e do comércio internacional.

Em segundo lugar, as análises marxistas são sistêmicas por definição. Elas buscam incorporar, entre outros, os aspectos econômicos, sociológicos, institucionais, políticos, jurídicos, culturais e ideológicos do neoliberalismo. Isso, necessariamente, inclui como, por que e em que medida as “reformas” neoliberais transformaram as estruturas da reprodução econômica e social após a desarticulação do compacto keynesiano-social democrático no âmbito das principais economias capitalistas, a paralisia do desenvolvimentismo, a implosão do bloco soviético, as transformações aceleradas na China e as crises na periferia europeia. Esta abordagem interdisciplinar e historicamente fundamentada é incompatível com as fronteiras que dividem as ciências sociais. No entanto, a influência dessas divisões continua existindo por trás da análise, o que contribui para conceptualizações bastante distintas das características do neoliberalismo, da articulação entre elas, e as suas relações de determinação mesmo dentro do marxismo. Isso implica que análises marxistas podem chegar, mais ou menos legitimamente, a conclusões bastante distintas sobre a vitalidade do capitalismo contemporâneo, a sua vulnerabilidade às crises, o espaço para a política eleitoral, a viabilidade de alternativas radicais, e assim por diante.

Em terceiro lugar, enquanto a representação esquemática das ideias que sustentam o neoliberalismo pode plausivelmente evitar o domínio “internacional”, as experiências neoliberais são completamente inseparáveis de processos globais de complexidade similar, especialmente o imperialismo e a globaliza- ção. Também por esse ângulo o neoliberalismo não pode ser encapsulado em uma frase de efeito: ele não pode nem ser definido de maneira puramente conceptual, nem capturado indutivamente através da simples descrição de experiências históricas.

A identificação destas dificuldades analíticas pode ajudar a contextualizar as quatro interpretações marxistas do neoliberalismo identificadas acima. Ela também pode apoiar a conclusão de que abordagens marxistas tendem a ser superiores frente a explicações rivais do neoliberalismo. Enquanto as primeiras são sistêmicas, baseadas na análise de classe, e fundamentadas numa grande teoria (no sentido de Mills, 1959), as interpretações rivais tendem a ser “middle range” ou largamente descritivas, assistemáticas e – por vezes, apesar das aparências em contrário, como no caso de várias interpretações keynesianas – metodologicamente individualistas.
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