Karl Marx ✆ Cacinho |
Flávio Miranda | Uma das questões mais controversas na obra
de Marx é o tema das crises econômicas. É muito comum, especialmente entre seus
detratores, a ideia de que a Crítica da
Economia Política concluía pela inevitabilidade da queda do capitalismo (e
sua substituição pelo socialismo) a partir de uma crise que resultaria da
identificada tendência à queda da taxa de lucro (é essa a caricatura que Thomas
Piketty apresenta de Marx em seu O
Capital no Século XXI). Esse é um determinismo mecânico-economicista
absolutamente estranho à obra de Marx. Entre os marxistas, é bastante conhecido
o longo debate em torno das causas das crises económicas 1 .
De nossa parte, devemos reconhecer que o próprio Marx não
oferece um tratamento acabado do tema em O
Capital (o que se justifica pelo escopo do estudo), nem em outros textos
(encontram-se indicações importantes nos Grundrisse
e no Teorias sobre a Mais-valia).
Contudo, acreditamos que a teoria marxiana corresponda à perspectiva teórica
mais profícua para tratar o fenômeno. Tal posição justifica-se pelo fato de
que, em Marx, a dinâmica capitalista, isto é, o processo cíclico de acumulação
de capital, deriva-se do movimento imanente a este modo de produção.
Ademais, se o tratamento das formas concretas de
manifestação das crises econômicas envolve algumas mediações teóricas
fundamentais entre as leis gerais identificadas por Marx e o nível fenomênico
(como apontaremos ao final), é exatamente o grau de generalidade empregado em O Capital que confere vitalidade à
teoria marxiana diante das especificidades históricas de cada uma das crises
cíclicas do capitalismo. O objetivo deste trabalho é apresentar os aspectos
fundamentais da dinâmica cíclica de acumulação de capital (portanto, das crises
econômicas), tal qual exposto em O
Capital, além de indicar o que acreditamos serem os passos necessários
entre essa análise geral e o ciclo econômico em suas formas concretas de
manifestação.
Nesse sentido, defendemos que a análise marxista das crises
econômicas não pode contentar-se com a mera aplicação do que teria sido legado
por Marx, como parte considerável dos autores que se inscrevem nesse campo
teórico (e político) parecem entender – alguns dos quais citados ao longo do
texto que segue. Polemizando contra essas leituras, acreditamos que, apesar de
possuir um entendimento sobre o fenômeno, Marx não o tratou sistematicamente
tendo em vista as questões de método subjacentes à sua teorização sobre as leis
gerais do modo de produção capitalista, que ganha forma mais acabada em O Capital. Ou seja, é possível (e até
mesmo necessário) recorrer-se a Marx para compreender a dinâmica cíclica de
acumulação de capital, mas, neste caso, o desafio que se impõe é o de ir além
de Marx.
Questões preliminares
Para começar devemos retornar ao prefácio escrito por Marx à
primeira edição de O Capital, no qual
o autor estabelece de maneira clara o objetivo de seu livro: elucidar as leis,
tendências, que conformam o modo de produção capitalista. A este modo de
produção, diz Marx, correspondem relações de produção e circulação (Marx, 2013,
p. 78). Uma relação social, como é sabido, define-se apenas em seu movimento de
constante reprodução (uma relação que não é reproduzida simplesmente deixa de
existir) e o método dialético é forma adequada de conferir-lhe expressão
teórica, na medida em que o movimento imanente ao objeto em análise
apresenta-se como resolução de sua própria constituição internamente
contraditória. Pode-se dizer, portanto, que é a própria dinâmica desse modo de
produção, o movimento subsumido ao processo de acumulação de capital (a
valorização do valor), o objeto de estudo da obra. A lei do valor de Marx é,
portanto, a expressão teórica dessa dinâmica própria ao processo de acumula-
ção de capital.
Ainda no mesmo prefácio, Marx anuncia o método a partir do
qual pretende atingir seu objetivo (Ibidem). Nas ciências naturais, diz Marx, é
possível (pelo menos em certas circunstâncias) isolar em laboratório alguns
elementos da realidade concreta a fim de se analisar suas determinações
principais. No estudo das sociedades, no entanto, esta tarefa cabe à abstração
mental. Ademais, se um corpo não revela de imediato suas partes componentes –
de maneira que suas determinações próprias aparecem de forma mistificada –
importa analisá-lo a partir das células, elucidando-se, desde as determinações
mais simples, as cadeias causais que conformam o seu ser-precisamente-assim. No
caso da sociedade capitalista, a determinação mais simples, sua célula, é
exatamente a forma-mercadoria. A forma do produto na sociedade burguesa revela,
em germe, todas as contradi- ções imanentes a esse modo de produção. Parte daí,
portanto, a análise que segue, da forma mais simples e abstrata, o caminho das
formas mais complexas e mais próximas à constituição concreta do modo de
produção capitalista.
Esse método, descrito inicialmente na famosa Introdução de 1857 (mais especificamente
no fragmento Método da Economia Política),
pode ser resumido na expressão concreto imediado – abstrato – concreto pensado
(ou mediado por abstrações)2 .Assim, reconhece-se que se todo conhecimento
parte das condições concretas da existência, a elucidação de suas conexões
causais reais só pode ser feita em abstrato, e o caminho da apreensão das
complexas determinações que conformam objeto de estudo deve ser o da contínua
“reaproximação” àquelas condições concretas de existência que devem ser
explicadas. A capacidade explanatória, isto é, de expor o domínio causal por
trás da imediaticidade dos fenô- menos é o critério de cientificidade adotado.
De fato, a escolha do ponto de partida de O Capital justifica-se pela constituição
própria de uma sociedade na qual a articulação social através do mercado é
forma dominante de sociabilidade. A sociedade capitalista é uma sociedade
mercantil e, como tal, apresenta-se aos indivíduos como uma sociedade na qual
se está irremediavelmente sujeito à dinâmica do mercado. A satisfação das
necessidades depende de um ato de compra (D-M) que, por sua vez, deve ser
precedido por uma venda (M-D). No entanto, o mero ato de pôr algo para a troca
(o “salto mortal da mercadoria”) não garante sua realização.
Para cada indivíduo considerado isoladamente, a articulação
social através da troca, o mercado, assume uma feição estranha (ou alienada),
portadora de uma dinâmica externa, independente e muitas vezes hostil. Esse
caráter estranhado das relações mercantis apresenta-se como uma relação entre
coisas que, portanto, parecem dotadas de vida própria. O reflexo no pensamento
dessas determinações concretas assume a forma de um fetiche, no qual essa forma
historicamente específica de reprodução social apresenta-se como condição
eterna e imutável da sociabilidade humana.
Além disso, na própria separação entre as fases que
conformam a metamorfose completa de uma mercadoria (M-D e D-M), uma separação
na qual uma fase não precisa decorrer imediatamente da outra, contém a
possibilidade do estancamento da circulação das mercadorias. Nestas condições
está posta, portanto, a possibilidade das crises econômicas. Marx é bastante
claro ao afirmar que a conversão dessa possibilidade em realidade envolve
passos teóricos que ainda não haviam sido dados até aquele ponto (capítulo 3 de
O Capital) da aná- lise (Ibidem, p.
187).
Assim, a demonstração do caráter necessário das crises
econômicas requer a explicitação das tendências subjacentes ao processo de
acumulação de capital. Tendências estas que determinam resultados
contraditórios entre si, erguendo barreiras à própria acumulação de capital.
Convém ressaltar que a dinâmica estranhada do mercado (tratada como fetiche da
mercadoria em O Capital), e que
assume forma (logicamente) mais desenvolvida no movimento do dinheiro (fetiche
do dinheiro), é a própria dinâmica da acumulação de capital a que faremos
referência a partir de agora: um processo externo, independente e hostil no
qual, portanto, o capital aparece como sujeito (fetiche do capital, cuja forma
acabada transparece no circuito de acumulação do capital portador de juros,
segundo Marx).
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