20/9/16

Corporeidade e processo de trabalho na filosofia de Marx

Karl Marx ✆ João Paulo
Lucas Carvalho Peto

Objetiva-se evidenciar e discutir os fundamentos que tornam possível problematizar a questão da corporeidade [Leiblichkeit] em relação com o processo de trabalho der Arbeitsprozeß] a partir dos escritos de Marx. Para tanto, são apresentadas as críticas que Marx dirige à concepção de subjetividade na filosofia de Hegel. Posteriormente, elucidam-se alguns dos pontos principais da crítica de Marx à filosofia pós-hegeliana. Por fim, apresentam-se os fundamentos categoriais do processo de trabalho e a relação da corporeidade com este.
Introdução
O objetivo destas notas1 é apresentar e analisar os fundamentos que possibilitam problematizar a questão da corporeidade [Leiblichkeit] em relação com o processo de trabalho na filosofia de Marx. Os debates acerca da corporeidade são, concomitantemente, contemporáneos e históricos. A questão aparece de formas distintas. A corporeidade é, com frequência, circunscrita sob a rigidez do binômio mente-corpo. O corpo eclode como obstáculo às aspirações da razão ou se configura como manancial primordial para a fuga das amarras da ilustração. A corporeidade aparece também como processo orgânico transversal, o próprio sujeito, ente criador. O corpo possui, igualmente, uma importância como realidade histórica, porquanto nele “[...] estão inscritas todas as regras, todas as normas e todos os valores de uma sociedade específica” (Daolio, 1995, p. 105). Essas concepções perpassam diferentes disciplinas e épocas.

O debate sobre o corporeidade na filosofia grega estendeu-se desde o “panteísmo materialista” dos físicos [φυσικσí̱]2 jônios até a afirmação aristotélica de que o corpo é a forma da alma, passando pela ambígua dualidade platônica e o materialismo de Demócrito. O corpo também expressava a saúde dos cidadãos [πολίτης]. Esta era indicador da boa ordenança do Estado. Na lógica da polis, a corporeidade era “[…] elemento de glorificação e de interesse do Estado” (Barbosa, Matos, & Costa, 2011, p. 25) e era ao redor do corpo que se estruturavam as estratégias no campo de batalha. Não obstante, “[…] a civilização grega não incluía as mulheres na sua concepção de corpo perfeito” (Ibidem).

A corporeidade também é uma questão central na filosofia cristã. O objetivo da lógica cristã parece ser a salvação da alma – a libertação dos entraves que a corporeidade representa na direção da purificação. Porém,
“[…] a salvação anunciada pelo Evangelho não era apenas a salvação das almas, mas a salvação dos homens, isto é, de cada um desses seres individuais, com sua carne, seus membros, toda essa estrutura de órgãos corporais” (Gilson, 2006, p. 231). O discurso cristão é, portanto, transpassado por uma ambiguidade suscitada por imagens engendradas sobre o corpo. Movimento pendular de enobrecimento e menosprezo. Ao corpo do pecador, desordenado e aviltado, opõe-se o harmonioso corpo da salvação. Na lógica do cânone do pensamento cristão afirma-se “[…] o valor, a dignidade e a perpetuidade do corpo” (Gilson, 2006, p. 229).
Na idade moderna, o
“[…] simples corpo vivente torna-se a aposta que está em jogo nas estratégias políticas” (Agamben, 2002, p. 11). O corpo emergira como agente de práticas sexuais transgressivas, configurando-se como lugar primevo de “crimes” contra a religião, a moral e a sociedade. A corporeidade era algoz das impotentes “[...] restrições sociais que visam conter as práticas sexuais dentro dos limites estabelecidos pelas convenções e pelas leis” (Grieco, 2009, p. 217).
Como exemplo de discurso contemporâneo sobre a corporeidade, vale citar a “ecologia humana”, um dos ramos da biologia contemporânea. O objetivo desta disciplina é compreender as relações entre os seres humanos e o ambiente (Galindo, 1998, p. 15). O fator que articula esta concepção é a inter-relação (Ibidem). Esta se dá através da permeabilidade da corporeidade humana. Com efeito, a corporeidade aparece não como uma dimensão que isola o ser humano do ambiente, mas como o elo que o inscreve como parte deste. Existem debates acerca dos limites da corporeidade. Por que “[...] nossos corpos deveriam terminar na pele? Ou por que, além dos seres humanos, deveríamos considerar também como corpos, quando muito, apenas outros seres também encapsulados pela pele?” (Haraway, 2000, p. 101). Qual é a extensão da corporeidade? O corpo é híbrido?

Diversos campos de produção de conhecimento debruçaram-se, e continuam a debruçar-se, sobre a problemática da corporeidade. Existem estudos acerca da motricidade, a questão da corporeidade na psicanálise freudiana, corporeidade e teorias feministas, o corpo na biologia, na educação física, nas artes plásticas, na literatura, em autores e autoras como Bourdieu, Butler, Merleau-Ponty, Nietzsche, Foucault, Deleuze, Espinosa, na medicina etc. À corporeidade se lançam demandas de ordem ontológica, epistemológica, ética, moral, política, econômica etc. O importante é observar que as divergências e congruências acerca da corporeidade remontam aos primórdios do desenvolvimento da civilização ocidental e, ao mesmo tempo, mantêm-se relevantes na contemporaneidade.

Considerado o objetivo, o material primordial de análise são os textos marxianos. A concisão desta delimitação, além de estabelecer o limite teórico, circunscreve também os possíveis resultados. A configuração categorial que é possível extrair dos textos marxianos não é a única, nem a mais atual, no que tange à problematização da corporeidade. Essa explicitação não é de todo dispensável. O contrário é mais fatual. Intentar apresentar uma noção de corporeidade a partir de Marx implica em uma determinada compreensão acerca do ser humano. Uma determinada compreensão ontológica, epistemológica, ética, política e econômica. Por isso, apresentar os argumentos sobre os quais se pode erigir uma noção de corporeidade a partir de Marx deve ser compreendido como uma possibilidade. Objetivando-se apresentar a concepção de corporeidade em relação com o processo de trabalho na filosofia marxiana, serão apresentadas notas acerca da em Marx. Posteriormente, serão elucidados alguns dos pontos sobre o qual recai a crítica de Marx à filosofia pós-hegeliana.
Sumário
1. Notas introdutórias sobre a problemática da subjetividade em Marx 
2. Apontamentos acerca da crítica de Marx à filosofia pós-hegeliana 
3. Corporeidade e processo de trabalho 
4. Considerações finais 
5. Referências
http://www.marxeomarxismo.uff.br/
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