Hannah Arendt ✆ Julia Casimira |
Leonardo
Pellegrinello Camargo | Neste artigo, abordamos a diferenciação
entre trabalho e obra no pensamento de Hannah Arendt, que, embora pareçam para
a modernidade conceitos similares ou até idênticos, para a filósofa esta
diferenciação é crucial para uma abordagem crítica necessária da condição
humana durante e após o século XX. Isto posto, expomos o conceito marxista de
trabalho e a posterior crítica feita por Arendt para construir o seu pensamento
político acerca da humanidade no pós-guerra.
Trabalho,
obra e ação no pensamento de Hannah Arendt
Em seu livro A
Condição Humana, Arendt diferencia três atividades do homem: o trabalho
(manutenção da vida); a obra (produção de algo novo); e ação (vida pública,
política)2 . Estas três atividades fazem parte da vita activa: a vida humana. A distinção proposta por Hannah Arendt entre trabalho e obra
tem um caráter de novidade. Ao defender esta distinção, ela argumenta que todas
as línguas europeias possuem duas palavras de etimologia diferente para
designar o que hoje para nós é uma mesma atividade, e curiosamente elas
conservam as duas palavras mesmo elas sendo usadas como sinônimas.
Em sua análise, Arendt afirma que, na Grécia antiga, eram
valorizados tanto o trabalho quanto a obra, pois os gregos achavam necessário
ter escravos em virtude da natureza servil de todas as ocupações que servissem
à necessidade de manutenção da vida. Neste contexto, os homens só poderiam ser
livres subjugando outros que eles, à força, submetiam à necessidade. A própria
instituição da escravidão, portanto, serviria para tentar excluir o trabalho
das condições da vida humana.
Na antiguidade clássica não havia distinção entre trabalho e
obra. Como os dois faziam parte da casa privada, estavam o mundo da
necessidade, ao contrário da esfera política pública. Hannah Arendt observa que
inclusive a política foi colocada na esfera da necessidade, pois os filósofos
gregos aboliram as distinções entre a contemplação a todos os outros tipos de
atividades.
O conceito
marxista de trabalho – a crítica de Arendt
Arendt destaca que a era moderna não tenha produzido nenhuma
teoria que distinguisse claramente entre o animal laborans e o homo faber. Esta
era inverteu as tradições, como por exemplo a tradicional hierarquia dentro da
vita activa, glorificando o trabalho como fonte de todos os valores.
Encontramos neste período a distinção entre trabalho produtivo e trabalho
improdutivo; e, como havia a glorificação do trabalho por sua produtividade,
autores como Karl Marx e Adam Smith menosprezavam o trabalho improdutivo, que
seria uma espécie de perversão do trabalho.
Como afirma o filósofo (MARX, p. 5- 6).
A relação entre o fato e o trabalho que o produz também não se altera absolutamente em nada pelo facto de a sua confecção constituir uma profissão particular, um elo da divisão social do trabalho. Desde que a necessidade de se vestir a isso o forçou, o homem confeccionou vestuário durante milhares de anos, antes que alguém se tornasse alfaiate. Mas a existência do tecido ou fato, ou de qualquer elemento da riqueza material não fornecida pela natureza, sempre pressupôs um trabalho produtivo especial destinado a adaptar as matérias naturais às necessidades humanas. O trabalho enquanto produtor de valores-de-uso, enquanto trabalho útil, é, independentemente das formas de sociedade, condição da existência do homem, uma necessidade eterna, o mediador da circulação material entre a natureza e o homem [,isto é, da vida humana]. Os valores-de-uso tecido, fato, etc. - isto é, os corpos das mercadorias - são combinações de dois elementos, matéria e trabalho. Se lhes retirarmos a soma total dos diversos trabalhos úteis que contêm, sempre resta um resíduo material, qualquer coisa fornecida pela natureza e que nada deve ao homem. Ao produzir, o homem só pode agir tal como a própria natureza; quer dizer, ele apenas pode modificar as formas da matéria. Mais: nessa obra de simples transformação, ele é ainda constantemente coadjuvado pelas forças naturais. O trabalho não é, portanto, a única fonte dos valores-de-uso que produz, da riqueza material. Ele é o pai e a terra a mãe, como diz William Petty.
Nesta distinção já haveria um sentido parecido à distinção
do trabalho e da obra, como afirma (ARENDT 2010, p. 98).
Em outras palavras, a distinção entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo contém, embora eivada de preconceito, a distinção mais fundamental entre obra e trabalho. Realmente, é típico e todo trabalho nada deixa atrás de si: o resultado do seu esforço é consumido quase tão depressa quanto o esforço é despendido. E, no entanto, este esforço, a despeito de sua futilidade, decorre de enorme premência; motiva-o um impulso mais poderoso que qualquer outro, pois a própria vida depende dele. A era moderna em geral e Karl Marx em particular, fascinados, por assim dizer, pela produtividade real e sem precedentes da humanidade ocidental, tendiam quase irressistivelmente a encarar todo o trabalho como obra e a falar do animal laborans em termos muito mais adequados ao homo faber, como a esperar que restasse apenas um passo para eliminar totalmente o trabalho e a necessidade.
Arendt considera, também, que a própria atividade da obra,
independentemente de estar na esfera privada ou na esfera pública, possui uma
produtividade própria, mesmo que a duração de seus produtos seja muito menor.
Essa produtividade reside na força de trabalho humana, que explica a
produtividade do trabalho. Contudo, ao contrário da produtividade da obra, que
tem como característica acrescentar novos objetos ao artifício humano, a
produtividade do trabalho apenas ocasionalmente produz objetos e sua
preocupação fundamental são os meios da própria reprodução e nunca obtém outro
“produto” do que a vida.
Caso a teoria de Marx fosse posta em prática – em uma
sociedade totalmente socializada, onde a única finalidade seria a sustentação
do processo vital – a distinção entre trabalho e obra desapareceria
completamente e toda obra se tornaria trabalho pois todas as tarefas teriam uma
função apenas no processo vital.
Hannah Arendt comenta também que na era moderna, tal como na
teoria de Marx, não há uma distinção entre o trabalho manual e o trabalho
intelectual. Haveria, nesta época, mais interesse na produtividade do trabalho
– incluído aí a obra. Não importaria, tanto para o capitalismo como para os
modernos, diferentes tipos de trabalho, mas importaria no caso comprar e vender
no mercado de trabalho a “força de trabalho”, da qual todo ser humano deve
possuir aproximadamente a mesma quantidade.
Assim, enquanto a teoria antiga desprezava o trabalho, a
teoria moderna o glorifica, louvando-lhe a produtividade. Na modernidade, a
subjetividade é revelada na distinção entre trabalho leve e pesado e é medida
em relação às necessidades do processo vital para fins da própria reprodução e
reside no excedente potencial inerente à força de trabalho humana e não na
qualidade ou caráter das coisas que produz. Portanto, a distinção entre
trabalho e obra torna-se uma diferença de grau quando não se leva em conta o
caráter da coisa produzida, nem sua localização, sua função e a duração de sua
permanência no mundo.
Como vimos sobre a vida activa e as suas diferentes esferas,
para Hannah Arendt seriam a linguagem e as experiências humanas que existem por
trás dela que nos ensinam sobre as coisas do mundo, e não a teoria, pois
(ARENDT, 2010, p. 106).
Vistos como parte do mundo, os produtos da obra – e não os produtos do trabalho – garantem a permanência e a durabilidade sem as quais o mundo simplesmente não seria possível. É dentro desse mundo de coisas duráveis que encontramos os bens de consumo com os quais a vida assegura os meios de sua sobrevivência. Exigidas por nosso corpo e produzidas pelo trabalho deste último, mas sem estabilidade própria, essas coisas destinadas ao consumo incessante surgem e desaparecem num ambiente de coisas que não são consumidas, mas usadas, e às quais, à medida em que as usamos, nos habituamos e acostumamos. Como tais, elas geram a familiaridade do mundo, seus costumes e hábitos de intercâmbio entre os homens e as coisas, bem como entre homens e homens. O que os bens de consumo são para a vida humana, os objetos de uso são para o mundo do homem. É destes que os bens de consumo derivam o seu caráter de objeto; e a linguagem, que não permite que a atividade do trabalho produza algo tão sólido e não-verbal como um substantivo, sugere a forte probabilidade de que nem mesmo saberíamos o que uma coisa é se não tivéssemos diante de nós 'o trabalho de nossas mãos'.
Deste modo, os “produtos” da ação e do discurso que, juntos,
constituem a textura das relações e dos negócios humanos são diferentes dos
bens de consumo (trabalho) e dos objetos de uso (obra). Estes produtos são
ainda menos duráveis e mais fúteis que o que produzimos para o consumo. Sua
existência depende inteiramente da pluralidade humana e da presença constante
de outros que possam ver e ouvir. A ação e o discurso, dependem, ainda, da
atividade do pensar, que está relacionada com o mundo mas não se manifesta nele
necessariamente. Neste sentido, a sua diferença conceitual com Marx é profunda,
como afirma (ENEFRÉN, 1984, P. 76).
Percebe-se que as perspectivas fundamentais de Marx e Arendt são bem opostas: a natural conciliação do coletivo (a “genética”) com o indivíduo, Arendt responde com um conceito convencional de política, consciente acima de tudo, pois libera o processo vital para glorificar a espontaneidade da ação livre: considera que a identidade que governa a dialética marxista não tem diferença com um pressuposto patológico, e se opõe à visão estática de limites estritos para preservar a clivagem público privado, distinção dupla fundamental entre o econômico e o político.
Assim, a ação, o discurso e o pensamento tem muito mais em
comum entre si que qualquer um deles tem com o trabalho ou com a obra, pois tem
como característica não produzir nada material ou necessário, e são tão fúteis
quanto a própria vida. Eles devem ser vistos, ouvidos e lembrados, e em seguida
“coisificados” para que se tornem coisas mundanas – feitos, fatos, eventos,
etc.
No pensamento de Arendt, o mundo humano depende, para sua
existência contínua, da presença de outros que tenham visto e ouvido e que
lembrarão do que viram e ouviram. Sem a lembrança e sem a reificação de que a
lembrança necessita para sua própria realização as atividades vivas da ação, do
discurso e do pensamento perderiam sua realidade no fim de cada processo e
desapareceriam como se nunca houvessem existido. Esta lembrança é necessária
pois são de natureza inteiramente extramundana, e assim precisam do auxílio de
uma atividade de natureza diferente; dependem, para sua realização do mesmo
artesanato que constrói as outras coisas do artifício humano.
Portanto, as coisas menos duráveis são aquelas necessárias
ao próprio processo da vida, e elas retornam ao processo natural que as
produziu após breve permanência neste mundo. Mesmo sendo feitas pelo homem, vem
e vão, são produzidas e consumidas de acordo com o movimento cíclico da
natureza, pois, para (ARENDT, 2010, p. 108).
A natureza e o movimento cíclico que ela imprime, à força, a todas as coisas vivas, desconhecem o nascimento e morte tais como os compreendemos. O nascimento e a morte de seres humanos não são ocorrências simples e naturais, mas referemse a um mundo ao qual vem e do qual partem indivíduos únicos, entidades singulares, impermutáveis e irreptíveis. (…) Uma filosofia que não chegue, como Nietzsche chegou, à afirmação da 'eterna recorrência' (ewige Wiederkehr) como o mais alto princípio de toda a existência, simplesmente não sabe do que está falando.
Assim, o outro uso da palavra vida, que é especialmente
humano, tem o significado de designar o intervalo de tempo entre nascimento e
morte, daí a possibilidade de escrever biografias; pois é somente dentro do
mundo humano que o movimento cíclico da natureza se manifesta como crescimento
e declínio.
Contudo, a característica comum ao processo biológico do
homem e ao processo de crescimento e declínio do mundo é que ambas fazem parte
do movimento cíclico da natureza; sendo cíclico, esse movimento é infinitamente
repetitivo, e não tem, em si, qualquer começo ou fim propriamente dito.
Portanto, o processo do trabalho move-se sempre no mesmo círculo prescrito pelo
processo biológico do organismo vivo, ao contrário do processo da obra, que
termina quando o objeto está acabado, pronto para ser acrescentado ao mundo
comum das coisas. A obra – onde o material da natureza é adaptado às
necessidades do homem – é sustentada pelo consumo, e a atividade que provê os
meios de consumo é o trabalho. O trabalho e o consumo seguem-se tão de perto
que quase chegam a constituir um único movimento – movimento que, mal termina,
deve começar novamente.
Para Arendt, além da manutenção da vida, a outra tarefa do
trabalho é travar uma luta constante e interminável contra os processos de
crescimento e declínio mediante os quais a natureza permanentemente invade o
artifício humano, ameaçando a durabilidade do mundo e sua prestabilidade ao uso
pelo homem. O que torna este esforço doloroso para o homem nesta tarefa é a
repetição.
A autora comenta que, para três autores da época moderna, –
Locke, Adam Smith e Marx – o trabalho passa a ser a origem de toda
produtividade e a expressão da própria humanidade do homem. Todos eles
afirmavam que o trabalho devia ser visto como a suprema capacidade humana de
construir um mundo, mas como o trabalho é a mais natural e a menos mundana das
atividades do homem, os três pensadores viram-se diante de algumas
contradições. Na crítica da autora aos três, especialmente a Marx, o principal
erro deles seria equacionar a obra com o trabalho, de tal forma que atribuem ao
trabalho certas qualidades que somente a obra possui.
Do mesmo modo, Marx insistiria que o processo da obra
termina com o produto final e esquece sua própria definição deste processo como
metabolismo entre o homem e a natureza, durante o qual o produto é
imediatamente incorporado, consumido e destruído pelo processo vital do
organismo. Sob o equívoco da concepção de trabalho marxista, (ARENDT, 2010, p.
128/129) afirma:
Mas estes são pontos secundários quando comparados à contradição fundamental que eiva, como um estigma, todo o pensamento de Marx, e que está presente tanto no terceiro volume de O Capital quanto nas obras do jovem Marx. A atitude de Marx em relação ao trabalho, em relação ao próprio foco do seu pensamento, sempre foi equívoca. Embora o trabalho fosse uma 'eterna necessidade imposta pela natureza' e a mais humana e produtiva das atividades do homem, a revolução, segundo Marx, não se destinava a emancipar as classes trabalhadoras, mas a emancipar o homem do trabalho; somente quando o trabalho é abolido pode o 'reino da liberdade' suplantar o 'reino da necessidade'. Pois o 'reino da liberdade começa somente onde termina o trabalho imposto pela necessidade e pela utilidade exterior', onde termina o 'império das necessidades físicas imediatas'. Contradições tão fundamentais e flagrantes quanto estas raramente ocorrem em escritores medíocres; no caso dos grandes autores, vão ao próprio cerne de sua obra. (…) O fato é que, em todos os estágios de sua obra, ele define o homem como animal laborans para levá-lo depois a uma sociedade na qual este poder, o maior e mais humano de todos, já não é necessário. Resta-nos a angustiosa alternativa entre a escravidão produtiva e a liberdade improdutiva.
Arendt questiona o porquê de o trabalho ser tão importante à
era moderna. Uma resposta seria que o conceito de processo veio a ser a
palavra-chave da nova era, bem como das ciências históricas e naturais que ela
desenvolveu. Aparece, por exemplo, nas concepções modernas de que “dinheiro
gera dinheiro” e que “poder gera poder” são refletidas pela metáfora
fundamental da fertilidade natural da vida. Neste sentido, afirma (DUARTE,
2000, p. 82).
O aspecto essencial da crítica de Arendt à Marx é o de que ele, em sua severa crítica ao presente, teria aceitado inúmeras pressuposições da modernidade em relação à dignidade do trabalho e ao caráter subsidiário da política em relação à economia, sem atentar para suas desastrosas implicações. O resultado final seria o de que um pensamento que almejava instaurar o reino da liberdade, teria sido enredado nas malhas da própria necessidade.
Voltando à Marx, ele baseia toda a sua teoria na concepção
do trabalho e da procriação como duas modalidades do mesmo processo fértil de
vida, indicando a fidelidade de suas descrições à realidade fenomenológica. O
trabalho para ele era a reprodução da vida do próprio indivíduo, que lhe
assegurava a sobrevivência, e essa afirmação é a origem da teoria que ele
desenvolveu logo após, chamando de trabalho abstrato a força de trabalho do
organismo vivo e concebendo o excedente de trabalho como aquela quantidade de
força de trabalho remanescente depois que foram produzidos os meios para a
reprodução do trabalhador. Para Arendt, ele adaptou sua teoria, da era moderna,
aos mais antigos e persistentes conhecimentos da natureza do trabalho, que
segundo as tradições hebraica e clássica estava intimamente ligado à vida como
processo de geração.
Trabalho, obra e ação
A autora chama atenção para o fato de o trabalho de Marx ter
coincidido com as teorias da evolução e do desenvolvimento que floresceram no
século XIX, como por exemplo a seleção natural. O que tem em comum entre estas
teorias nos vários ramos científicos é a ideia de processo, sendo um pensamento
novo na era moderna, como afirma (ARENDT, 2010, p. 129).
Como a descoberta dos processos pelas ciências naturais coincidira com a descoberta da introspecção na filosofia, nada mais natural que o processo biológico existente dentro de nós fosse tomado como modelo do novo conceito; dentro da estrutura das experiências ao alcance da introspecção, não conhecemos outro processo senão o processo vital do nosso corpo, e o trabalho é a única atividade que lhe corresponde e na qual podemos traduzi-lo. Assim, era quase inevitável que o equacionamento da produtividade com a fertilidade na filosofia do trabalho da era moderna desse azo a uma variedade de filosofias baseadas no mesmo equacionamento.
Como ilustração, a autora comenta sobre Nietzsche e Bergson
que, para eles, a vida e não o trabalho foi proclamada como “criadora de todos
os valores”; esta glorificação da mera dinâmica do processo vital aboliu aquele
mínimo de iniciativa presente até mesmo em atividades que são impostas ao homem
pela necessidade, como o trabalho e a procriação.
Contudo, nem a substituição do indivíduo pela sociedade pode
eliminar o caráter de privatividade estrita e até mesmo cruel de experiência
dos processos do corpo, ou até mesmo da própria atividade do trabalho. O animal
laborans expropriado não se torna menos privado pelo fato da já não possuir um
lugar privativo onde possa esconder-se e proteger-se da esfera comum. Arendt
cita Marx, quando disse que os homens, uma vez socializados e libertos do
trabalho, gozariam essa liberdade em atividades privadas – o que chamamos de
hobbies.
Comparando a obra e o trabalho, a autora afirma que,
enquanto no trabalho o animal laborans se “mistura” com os materiais, na obra o
homo faber se “faz” e literalmente “trabalha sobre” eles, e assim fabrica a
infinita variedade de coisas cuja soma total constitui o artifício humano. Em
sua maioria, essas coisas são objetos destinados ao uso e dotados de
durabilidade e, devidamente usadas, não desaparecem, e emprestam ao artifício
humano a estabilidade e a solidez sem as quais não se poderia esperar que ele
servisse de abrigo à criatura mortal e instável que é o homem. Mesmo que os
materiais possam se deteriorar, sinal de que são produtos de um fabricante
mortal, não é tão certo que este seja o destino final do próprio artifício
humano, no qual todas as coisas podem ser constantemente substituídas com o ir
e vir de gerações que habitam o mundo construído pelo homem. Arendt afirma que
o que o uso desgasta é a durabilidade, porém (ARENDT, 2010, p. 150).
É esta durabilidade que empresta às coisas do mundo sua relativa independência dos homens que as produziram e as utilizam, a 'objetividade' que as faz resistir, 'obstar' e suportar, pelo menos durante algum tempo, as vorazes necessidades de seus fabricantes e usuários. (…) Em outras palavras, contra a subjetividade dos homens ergue-se a objetividade do mundo feito pelo homem, e não a sublime indiferença de uma natureza intacta, cuja devastadora força elementar os forçaria a percorrer inexoravelmente o círculo do seu próprio movimento biológico, em harmonia com o movimento cíclico maior do reino da natureza. Somente nós, que erigimos a objetividade de um mundo que nos é próprio a partir do que a natureza nos oferece, que o construímos dentro do ambiente natural para nos proteger contra ele, podemos ver a natureza como algo 'objetivo'.
Deste modo, mesmo que o uso e o consumo, bem como a obra e o
trabalho, não sejam a mesma coisa, eles coincidem em áreas importantes, a tal
ponto que parece justificar o acordo unânime com que a opinião pública e
opinião dos eruditos identificaram numa só estas duas questões diferentes.
Certamente o uso contém algum elemento de consumo, na medida em que o processo
de desgaste ocorre através do contato do objeto de uso com um organismo vivo
cuja natureza é consumir. Quanto mais íntimo é o contato entre o corpo e a
coisa usada, mais plausível parece o equacionamento dos dois.
Hannah Arendt afirma que a fabricação, que é a obra do homo
faber, consiste em reificação. O material, necessário para fazer as coisas, já
é um produto das mãos humanas que o retiraram de sua natural localização, seja
matando um processo vital, seja interrompendo algum dos processos mais lentos
da natureza, como no caso do ferro. Enquanto o homo laborans nutre o processo
da vida, o homo faber se porta como amo e senhor de toda terra, e está
intrínseco aí um elemento de violação e violência.
O que orienta o processo de fabricação está fora do
fabricante e precede o processo da obra em si, tal como as exigências do
processo vital dentro do trabalhador precede o processo do trabalho. Portanto,
o processo de fabricação é orientado por um modelo segundo o qual se constrói o
objeto.
Este papel que a fabricação veio desempenhar na vida activa
é muito importante, pois (ARENDT, 2010, p. 155).
[...] o fato de que a imagem ou o modelo cuja forma orienta o processo de fabricação não apenas o precede, mas não desaparece depois de terminado o produto; sobrevive-lhe intacto, pronto, por assim dizer, a emprestar-se a uma infinita continuidade de fabricação. Esta multiplicação potencial, própria do trabalho, difere em princípio da repetição que caracteriza o trabalho. Esta é exigida pelo ciclo biológico e permanece sujeita a ele; as necessidades e carências do corpo humano vem e vão, e embora tornem a surgir a intervalos regulares jamais perduram muito tempo. A multiplicação, diferentemente da mera repetição, multiplica algo que já possui exigência relativamente estável e permanente no mundo.
Portanto, o processo de fazer da obra é inteiramente
determinado pelas categorias de meios e fins. No processo de fabricação o fim é
indubitável, pois ocorre quando algo inteiramente novo, com suficiente
durabilidade para permanecer no mundo como unidade independente, é acrescentado
ao artifício humano e, após o final da fabricação, quando obtém o produto, o
processo não precisa se repetir.
Este processo não é irreversível: o que foi produzido por
mãos humanas pode ser refeito e destruído, e a sua principal característica é
ter um começo definido e um fim também definido. Ao contrário da ação que,
embora tenha um começo definido, jamais tem um fim previsível, e do trabalho
que, como já foi dito, está preso à engrenagem do movimento cíclico do processo
vital do corpo, não tem começo nem fim.
Considerações
finais
Uma das críticas feitas por Arendt à teoria de Marx é a sua
defesa da violência como motor da história, e única forma de se alcançar uma
sociedade justa e igualitária; enquanto que, para Arendt, quando se utiliza a
violência, acaba-se a autoridade – que existe só através do respeito e
admiração do outro – e consequentemente é o fim também da política – um espaço
entre iguais, como afirma (WAGNER, 2002, p. 195).
Diferentemente de Marx, que acreditava no surgimento do ‘homem novo’ para a construção de uma nova sociedade, Arendt crê que o homem pode ‘construir a experiência genuína do mundo e do amor pelo mundo’ com as capacidades que dispõe [...].
Em seu texto A tradição e a época moderna, Hannah Arendt
afirma que três pensadores do século XIX – Nietzsche, Marx e Kierkegaard –
tentam elaborar novas teorias para explicar a realidade, já que para a visão da
autora começa aí a crise do mundo ocidental.
Contudo, os três caem em uma armadilha: invertem categorias
já estabelecidas, não criando novas. No caso de Marx, ele inverte teoria e
práxis, colocando a teoria de Hegel de cabeça para baixo. O marxismo não
consegue inovar em uma nova visão de mundo – necessária para compreender um
mundo em crise -, fica restrito às categorias já dadas, apenas valorizando uma
em detrimento à outra.
Neste caso, ao definir o homem como um ser que trabalha,
Marx cai em uma grande contradição em sua obra, que para Arendt é um problema
fundamental: como atingir o comunismo, uma sociedade igualitária ideal onde
busca-se fazer minimamente o trabalho, se o homem só é homem se ele trabalha?
Neste sentido, a teoria marxista não consegue fundamentar inteiramente a
condição humana, pois ao reduzir o homem como apenas um ser que fabrica, deixa
uma lacuna importante para compreender como este homem tem relações políticas,
pois apenas com o trabalho não se faz política. Isto posto, consideramos que a
diferenciação que Arendt faz entre trabalho e obra é essencial para compreender
a condição humana pois não reduz o homem a uma só categoria, mas o define –
junto com a ação – como um ser plural, essencial para pensarmos e fazermos a
política.
Referências
bibliográficas
ARENDT, Hannah. A
Condição Humana. Tradução de Roberto Raposo; revisão técnica: Adriano
Correia. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
ARENDT, Hannah. Entre
o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 2000.
DUARTE, André. O
pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt. São
Paulo: Paz e Terra, 2000.
ENEFRÉN, André. La
pensée politique de Hannah Arendt. Paris: Presses Universitaires de France,
1984.
MARX, Karl. O Capital.
1° Tomo. Consulta no endereço: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ma000086.pdf.
Acesso em 07/07/2013.
WAGNER, Eugênia Sales. Hannah
Arendt e Karl Marx: o mundo do trabalho. São Paulo: Ateliê editorial, 2002.
Notas
1 Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica
do Paraná (PUC/PR), Paraná – Brasil; Professor do Centro Universitário
Claretiano (CEUCLAR), Paraná – Brasil. E-mail: leonardopc.claretiano@gmail.com
2 Utilizamos a tradução dos termos labor (trabalho), work (obra)
e action (ação) baseandose na seguinte obra: ARENDT, Hannah. A Condição Humana.
Tradução de Roberto Raposo; revisão técnica: Adriano Correia. 8ª ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010.
http://www2.ufrb.edu.br/griot/ |