7/3/15

Desenvolvimento em Marx e na teoria econômica: por uma crítica negativa do desenvolvimento capitalista

Bianca Imbiriba Bonente   |  O objetivo desse trabalho é estabelecer o contraste entre duas posições distintas sobre desenvolvimento: aquela oferecida por Marx e aquela veiculada pela ciência econômica. Com isso, esperamos mostrar, em primeiro lugar, que as teorias do desenvolvimento são única e exclusivamente teorias do desenvolvimento capitalista, tanto no sentido de que o limite teórico e prático da sua intervenção é o capitalismo (e apenas o capitalismo), quanto no sentido de que ao fazê-lo projetam o capitalismo (uma imagem dele, ao menos) como figura inexorável do futuro da humanidade. Em segundo lugar, partindo de uma releitura da teoria social marxiana, defendemos ser possível resgatar uma visão de mundo dentro da qual o termo desenvolvimento é empregado de modo plenamente objetivo: isto é, utilizado exclusivamente para se referir às propriedades dinâmicas de funcionamento do objeto examinado (independentemente da forma como se julguem essas propriedades). Esperamos ainda mostrar como, dentro dessa concepção, o desenvolvimento capitalista se apresenta como uma fase historicamente contingente do desenvolvimento social em geral, indicando ser não apenas possível, mas também necessário, realizar uma crítica negativa do desenvolvimento capitalista.

Introdução 1

O objetivo deste trabalho é estabelecer o contraste entre duas posições distintas sobre desenvolvimento, com implicações distintas sobre a prática política: aquela oferecida por Marx e aquela veiculada pela ciência econômica (especialmente entre as chamadas teorias do desenvolvimento). A partir dessa contraposição, buscamos demonstrar, em primeiro lugar, que no âmbito da teoria econômica o desenvolvimento é entendido, em geral, como trânsito do “pior ao melhor” – o que envolve, necessariamente, um juízo sobre condições pretéritas, presentes ou futuras, realizado com base em determinados critérios pré-estabelecidos (produto per capita, expectativa de vida, nível de escolaridade etc.). Além disso, pretendemos mostrar que as teorias do desenvolvimento são única e exclusivamente teorias do desenvolvimento capitalista, tanto no sentido de que o limite teórico e prático da sua intervenção é o capitalismo (e apenas o capitalismo), quanto no sentido de que ao fazê-lo projetam o capitalismo (uma imagem dele, ao menos) como figura inexorável do futuro da humanidade.

Duas ressalvas: é claro que, ao realizar uma inspeção crítica conjunta das teorias do desenvolvimento, não ignoramos (1) as diversidades de formulações e (2) a possibilidade de que essas teorias reconheçam a existência de problemas associados à dinâmica capitalista. No entanto, mesmo quando críticas, essas teorias apresentam, quando muito, uma crítica positiva: uma crítica que sempre se refere às condições imediatamente dadas e às possibilidades que podem se pôr (também imediatamente) a partir dessas condições (a crítica das condições e das possibilidades não é realizada). Nos termos de Moishe Postone (2014, p. 84): uma crítica “que critica o que existe com base no que também existe – aponta em última análise para outra variação da formação social capitalista existente”.

Em segundo lugar, entendemos ser possível resgatar uma visão de mundo dentro da qual o termo desenvolvimento é empregado de modo plenamente objetivo, isto é, utilizado exclusivamente para se referir às propriedades dinâmicas de funcionamento do objeto examinado (independentemente da forma como se julguem essas propriedades). Esperamos ainda mostrar como, dentro dessa outra concepção de desenvolvimento, o desenvolvimento capitalista se apresenta como uma fase historicamente contingente do desenvolvimento social em geral. A partir disso (especialmente da forma como descrevemos a dinâ- mica de funcionamento dessa fase), concluímos ser possível e necessário realizar uma crítica negativa do desenvolvimento capitalista: “aquela que critica o que é sob as bases do que poderia ser – que aponta para a possibilidade de outra formação social” (Ibidem).

Para tanto, o artigo encontra-se dividido em duas seções (além da introdu- ção e conclusão). Na primeira delas, buscamos defender, mais uma vez, a possibilidade e necessidade de resgatar uma visão de mundo dentro da qual o termo desenvolvimento é empregado de modo plenamente objetivo. Isto é, buscamos defender a possibilidade de formulação de uma teoria do desenvolvimento autenticamente ontológica e definir de modo mais preciso o sentido do termo desenvolvimento dentro dessa perspectiva

Na segunda, buscamos oferecer um panorama geral da forma como o desenvolvimento é encarado no âmbito da ciência econômica. Diferentemente do que pode parecer à primeira vista, o apanhado realizado nessa segunda seção não tem como objetivo avaliar se as teorias do desenvolvimento, conhecidas por interpretar os problemas dos países subdesenvolvidos, produzem ideias melhores ou piores quando comparadas umas com as outras. Ao contrário, esperamos demonstrar, através da identificação de elementos teóricos comuns, que as teorias sob análise encontram-se no interior do amplo conjunto de formulações ao qual se pretende dirigir uma crítica conjunta, fundamentada no arcabouço teó- rico da primeira seção e apresentada na conclusão geral do artigo.

Por uma teoria ontológica do desenvolvimento

Não é de se estranhar que um autor polêmico como Marx suscite ainda hoje tantas releituras e interpretações, dos mais variados tipos e nas mais diversas áreas, desde aquelas decididas a apontar inconsistências e incorreções teóricas, até as que buscam, a partir de um resgate, avançar em pontos pouco explorados pelo autor, passando ainda pelas tentativas de sistematização (pretensamente isentas) geralmente encontradas em manuais e/ou livros-texto. Em uma inspe- ção rápida desse material, podem ser encontradas algumas leituras pertinentes (embora nem sempre corretas) e outras insustentáveis diante de um exame cuidadoso da obra do autor. Particularmente no que diz respeito à temática do desenvolvimento, uma leitura bastante difundida é aquela que atribui ao autor uma noção de desenvolvimento associada ao trânsito inexorável por etapas históricas bem definidas. De acordo com essa concepção, portanto, Marx estaria apresentando a história humana como uma sucessão de modos de produção (movida pelas contradições que se estabelecem entre forças produtivas e relações de produção, ou entre base econômica e superestrutura), cujo fim, ou estágio último, seria o comunismo (independentemente da forma como este é concebido)2 .

Perspectivas desse tipo buscam amparo, por exemplo, em trechos do prefá- cio ao Para a Crítica da Economia Política, onde Marx (1982, p. 26) fala de “rela- ções de produção [...] que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das [...] forças produtivas materiais”, ou ainda em trechos do conhecido prefácio à primeira edição de O Capital, onde Marx utiliza por diversas vezes o termo desenvolvimento, geralmente em referência aos casos inglês e alemão (tomados ambos, especialmente o primeiro, como “laboratórios de investiga- ção”). Nesse particular, Marx (2002, p. 16) faz afirmações como “o país desenvolvido não faz mais do que representar a imagem futura do menos desenvolvido”, ou mesmo, “uma nação deve e pode aprender de outra. [...] não pode ela suprimir, por saltos ou por decreto, as fases naturais de seu desenvolvimento” (Ibidem, pp. 17-18). Nas passagens mencionadas, portanto, Marx estaria comunicando aos conterrâneos alemães que o futuro de seu país poderia ser conhecido diretamente pelo exame do passado de um país mais desenvolvido: a Inglaterra. Como sintetizado na expressão tomada de empréstimo pelo autor das Sátiras de Horácio: “Quid rides? Mutato nomine, de te fabula narratur”3 .

Ainda que o emprego da palavra desenvolvimento nas passagens supracitadas tenha alimentado polêmicas, é possível encontrar inteligibilidades bastante diversas da questão dentro do mesmo ambiente teórico. Uma interpretação particularmente instigante encontra-se no trabalho póstumo do filósofo marxista G. Lukács (1979). Considerando o conjunto da obra e o sentido geral da teoria social marxiana, Lukács propõe que, com a palavra desenvolvimento, Marx tem por referência o aumento objetivo da complexidade como elemento regulador da dinâmica de funcionamento de objetos estruturados ao longo do tempo (Ibidem, p. 54). Ou seja, “uma dada estrutura (totalidade) é objetivamente superior, ou mais desenvolvida, do que outra estrutura da mesma espécie caso seja constituí- da por um maior número de componentes específicos, ou pelo mesmo número de componentes mais complexos” (Medeiros, 2013, p. 95).

Tomando exclusivamente nossa condição de seres naturais e o critério acima apresentado, podemos dizer, por exemplo, que mesmo o mais deplorável dos seres humanos é mais desenvolvido que um animal de estimação (por maior que seja a estima pelos últimos). Se a sociedade é entendida como uma totalidade composta de vários complexos, complexamente articulados, o mesmo tipo de análise pode ser a ela aplicada. E, assim como no caso anterior, proferir senten- ças a respeito do desenvolvimento da sociedade significa falar sobre o grau de desenvolvimento/complexidade de suas esferas constitutivas: economia, polí- tica, artes, direito, religião etc.

Assim, em um nível ainda bastante elevado de abstração, podemos resgatar a descrição oferecida por Marx sobre a sociedade em geral e aquelas determinações que são comuns a todas as épocas (independentemente das condições históricas específicas). Nesse caso, o aumento no grau de complexidade poderia ser traduzido no crescimento da sociabilidade em sentido extensivo (aumento da quantidade de componentes predominantemente sociais como elementos mediadores da vida em sociedade) e/ou intensivo (crescente complexidade dos componentes já existentes), tendência essa que Marx costumava caracterizar como recuo das barreiras naturais. Sobre as tendências que regulam a dinâmica de funcionamento da sociedade, Lukács (2007, pp. 237-238) menciona ainda o aumento das forças produtivas do trabalho (ou seja, a diminuição do tempo de trabalho necessário à produção e reprodução das condições de vida humana) e a formação do gênero humano, resultado das “ligações quantitativas e qualitativas cada vez mais intensas entre as sociedades singulares originalmente pequenas e autônomas” (Ibidem).

No caso da sociedade em forma especificamente capitalista, desenvolvimento significa, seguindo a mesma lógica, a operação das leis que emanam da organização própria da economia regida pelo capital em sentido extensivo (i.e., para uma porção mais ampla do globo, submetendo uma quantidade maior de formações sociais e seres humanos) e/ou intensivo (comandando momentos mais amplos da convivência social, como a atividade artística, esportiva, rela- ções afetivas etc.). O trânsito desde um estágio mais baixo de desenvolvimento para um estágio mais alto significa, portanto, a predominância mais ampla da lógica capitalista na existência social (e não a passagem do pior ao melhor, como quer que esses estados sejam definidos).

Se essa é, de fato, a maneira como Marx concebeu o desenvolvimento, então o desenvolvimento de que fala em O Capital é o desenvolvimento do seu objeto de análise (a sociedade capitalista, cuja dinâmica é dominada por sua economia, como procura demonstrar a obra). Ademais, o fato de que Marx tenha procurado capturar a essência desse desenvolvimento mediante o enunciado de leis de tendência revela, por um lado, que o autor tem plena consciência de que o processo de desenvolvimento comporta histórias (i.e., trajetórias concretas, efetivas) bastante diferenciadas. Isso porque leis de tendências não são afirmações sobre sequências regulares de eventos, mas sim proposições sobre a capacidade causal de um determinado objeto do mundo, que pode ser exercida sem que os fenômenos causados se manifestem (em virtude da operação de tendências contrarrestantes). Naturalmente, isso confere à análise de Marx um caráter post festum, não preditivo. Por outro lado, a caracterização do processo de desenvolvimento mediante o enunciado de leis de tendência nitidamente revela o reconhecimento do caráter não-teleológico da história em seu conjunto. Ainda que Marx destaque a teleologia como o aspecto distintivo da práxis humana, ele simultaneamente caracteriza a dinâmica da sociedade como o resultado da articulação espontânea, não-teleológica dessas práticas.

Com essas considerações, torna-se possível retomar as passagens de Marx citadas no início dessa introdução, especialmente aquelas que tratam da relação entre Inglaterra e Alemanha. À luz da interpretação aqui defendida, pode-se sugerir que Marx considerava a Alemanha um país capitalista, mas com um grau de penetração do capital na vida social como um todo relativamente limitado em comparação com a Inglaterra. Por esse motivo afirma que “além dos males modernos, oprime a nós alemães uma série de males herdados, originários de modos de produção arcaicos, caducos, com seu séquito de relações políticas e sociais contrárias ao espírito do tempo. Somos atormentados pelos vivos e, também, pelos mortos. Le mort saisit le vif. [O morto tolhe o vivo]” (Marx, 2002, pp. 16-17).

Um indício claro desse raciocínio também pode ser encontrado na afirma- ção de que a Alemanha é menos desenvolvida que a Inglaterra por não contar com uma regulação jurídica das relações entre capital e trabalho, isto é, com uma estrutura jurídica compatível com a produção capitalista (ou ainda, com “rela- ções de produção” correspondentes à “etapa determinada de desenvolvimento das [...] forças produtivas materiais”). Mais do que isso, ao afirmar que a Alemanha se desenvolveria como a Inglaterra, Marx não estava falando de eventos e fenômenos históricos concretos, mas sim do surgimento, naquele país, de um terreno favorável à operação das leis (econômicas) que caracterizam e governam a sociedade capitalista.

Em suma, a análise aqui sugerida nos permite afirmar que estudar o desenvolvimento capitalista, desde uma perspectiva marxista, significa (1) ter consciência da processualidade que caracteriza esse sistema, (2) apreender as leis gerais de movimento da sociedade em geral e em forma especificamente capitalista e (3) conhecer as condições concretas de manifestação de tais leis. Nesse sentido, independentemente das consequências dessas leis gerais e de suas condições concretas (sejam elas detestáveis ou adoráveis), o que importa para a aná- lise do desenvolvimento capitalista em si é saber se, na passagem de um período a outro, o funcionamento do capitalismo tornou-se mais ou menos adequado à lógica interna do capital.

Dentro dessa perspectiva, portanto, podemos dizer que o capital é tanto mais desenvolvido, quanto mais ampla a sua atuação. Ou seja, por mais contraintuitivo que pareça, o fato de o capital ampliar seu alcance territorial (tendência à formação do mercado mundial), penetrar nas mais distintas esferas da vida social (como, por exemplo, as artes, esportes, relações familiares, de afeto etc.) e atuar em um número maior de setores (como, por exemplo, aqueles originalmente conduzidos pelo Estado, nos quais a lucratividade é relativamente diminuta e o retorno é mais demorado), imprimindo, em todos esses casos, a sua lógica de funcionamento, significa que o capital se desenvolveu (Marx, 2011, p. 438).

Por fim, temos clareza de que essa não é a forma como as teorias do desenvolvimento analisam o capitalismo. Como pretendemos demonstrar adiante, em lugar do desenvolvimento em si da sociedade, tais teorias em geral se atêm a determinadas expressões empíricas, utilizadas como critério para julgar o desenvolvimento capitalista como bom ou ruim. No primeiro caso, de julgamento positivo, as teorias aparecem não raramente como apologia do capital. No segundo, de julgamento negativo, as teorias soam como uma denúncia sobre o caráter desumano do capital (esquecendo, por vezes, que o desenvolvimento capitalista não tem sentido humano!).

Teorias do desenvolvimento: por uma crítica ontológica

Uma vez apresentado o sentido geral da teoria ontológica do desenvolvimento aqui defendida, dedicamos a segunda seção do presente trabalho à inspe- ção crítica daquelas formulações que, no âmbito da ciência econômica, buscaram dar um tratamento mais refinado à temática: as chamadas teorias do desenvolvimento. Ainda que, passando em revista a evolução do pensamento econômico, seja possível encontrar incontáveis referências à questão do desenvolvimento, tomamos como ponto de partida as formulações produzidas nos anos 1940/1950, momento no qual se registra o nascimento da Economia do Desenvolvimento como uma disciplina relativamente autônoma e especificamente dedicada à temática.

Esse período, que coincide com o fim da Segunda Guerra Mundial, foi marcado por uma série de reorientações (especialmente no plano político-ideológico) e transformações significativas na configuração mundial (em virtude das inúmeras descolonizações e revoluções), que oferecem importante auxílio à compreensão das principais características daquele conjunto teórico. Um aspecto comumente ressaltado, e recorrentemente utilizado como critério para reunião dessas teorias em um mesmo grupo, diz respeito ao fato de todas compartilharemuma mesma preocupação: diante do reconhecimento de que os diferentes países sustentam trajetórias históricas de crescimento distintas, as teorias do desenvolvimento são identificadas como aquelas que se ocupam de explicar a existência dessas trajetórias particulares e sugerir possíveis soluções para os “menos favorecidos” (ou subdesenvolvidos).

O aspecto geralmente utilizado para distinguir essas teorias, portanto, é a preocupação com a ausência de desenvolvimento, ou seja, com o subdesenvolvimento – termo que, como indica a própria etimologia da palavra, é normalmente utilizado para designar uma condição de baixo grau (ou mesmo ausência) de desenvolvimento. Nesse período, passaram a ser chamadas de subdesenvolvidas aquelas regiões materialmente menos favorecidas (também conhecidas como Terceiro Mundo), que não foram capazes de acompanhar determinado padrão de desenvolvimento socioeconômico, atribuído aos países capitalistas pioneiros no processo de industrialização (também conhecidos como Primeiro Mundo).

Apesar da diversidade de teorias que marca esse período de grande efervescência do debate sobre desenvolvimento, algumas características gerais ainda podem ser identificadas. Em primeiro lugar, o desenvolvimento é tomado como sinônimo de aumento da riqueza, medida pela renda per capita (acompanhado, em alguns casos, da noção de que esse aumento de riqueza deve ser capaz de gerar melhorias nas condições de vida da população). Consequentemente, por contraposição, o subdesenvolvimento é associado à baixa renda per capita (e, por vezes, à incapacidade de garantir condições dignas de vida para a população). Além disso, o que se observa nesse período é a predominância da ideia de que o desenvolvimento deve ser promovido através da industrialização. Assim, utilizando uma combinação de argumentos teóricos (de inspiração clássica, keynesiana e/ou schumpeteriana) e históricos (amparados nas experiências bem sucedidas de industrialização da Europa ocidental, Estados Unidos e União Soviética), essas teorias procuram defender e justificar a necessidade da industrialização.

Por outro lado, as principais divergências entre as teorias clássicas do desenvolvimento giram em torno de dois pontos fundamentais. O primeiro, diz respeito aos determinantes do subdesenvolvimento e, portanto, à tentativa de explicar a baixa renda per capita – nesse caso, é possível observar que, enquanto algumas teorias apontam a baixa poupança e ausência de recursos como o determinante em última instância do subdesenvolvimento, outras acreditam que se trata apenas de uma má utilização dos recursos disponíveis. O segundo ponto refere-se à estratégia de industrialização defendida pelas diferentes teorias (mais ou menos intensiva em capital, com ou sem intervenção do estado, equilibrado ou desequilibrado etc.).

Naquele contexto, portanto, as teorias do desenvolvimento surgem como formulação científica de compreensão e administração da dinâmica social capitalista, consolidando o argumento segundo o qual, somente através deste expediente, seria possível promover uma convergência (ou, no mínimo, uma aproximação) entre as trajetórias de crescimento das diferentes nações (ou conjunto de nações). Ou seja, tratava-se de transformar o progresso presumidamente automá­ tico que caracteriza esta sociedade num projeto presumidamente dirigido (pelo Estado).

Pode-se dizer que esta foi a visão dominante até meados dos anos 1970, quando, acompanhando a crise econômica que se espalhou pelo mundo durante esta década e a seguinte, a pretensão de dirigir o capitalismo entrou em colapso. Como reconhecido por diversos comentadores (e mesmo por alguns teóricos do desenvolvimento), portanto, a crise dos anos 1970, aliada à posterior ruína do socialismo real, refletiu-se inicialmente em uma crise para a disciplina, seguida de substantivas reorientações.

Em primeiro lugar, a crise na disciplina assume a forma de um crescente ceticismo quanto à possibilidade de superação do subdesenvolvimento e promoção da tão almejada convergência da riqueza das nações. Assim, as décadas de 1960 e 1970 são marcadas pelo surgimento de inúmeros trabalhos questionando a possibilidade de realização do ideal de desenvolvimento compartilhado pelas concepções “clássicas” do desenvolvimento, mesmo entre autores profundamente identificados com aquelas teorias. No caso latino-americano, por exemplo, é bastante emblemática a inflexão ocorrida no âmbito da CEPAL e o aparecimento do conjunto de formulações conhecido como teorias da dependência – que, apesar da não homogeneidade, compartilham o entendimento de que o sistema econômico mundial, por sua própria constituição, produz desenvolvimento de alguns às custas do subdesenvolvimento de outros.

Por outro lado, observa-se o surgimento de toda uma nova literatura decidida a provar que o fracasso na promoção do desenvolvimento não deriva da impossibilidade de realização do projeto em si, mas das estratégias adotadas para promovê-lo (especialmente aquelas focadas na industrialização com interven- ção do Estado na economia). Na verdade, esse expediente crítico pode ser visto como reflexo de uma mudança mais ampla no plano político-ideológico, marcada pelo enfraquecimento do keynesianismo e ressurgimento da ideologia liberal (renovada sob a roupagem do neoliberalismo). Nesse sentido, além da tentativa de demonstrar os equívocos das estratégias de desenvolvimento baseadas na intervenção e no planejamento, as principais contribuições nesse campo entendem que a resolução de problemas característicos dos países subdesenvolvidos depende, fundamentalmente, da ampliação da liberdade de mercado.

Finalmente, esse contexto também é marcado pelo surgimento de teorias que acreditam que o problema do desenvolvimento não está no seu caráter “mitológico” ou nos equívocos estratégicos, mas na própria definição de desenvolvimento. Assim, embora diversos autores continuem a tratar o desenvolvimento econômico como sinônimo de crescimento do produto – como pode ser visto, por exemplo, nos novos modelos de crescimento que utilizam aparatos matemá- ticos e estatísticos cada vez mais sofisticados –, ganha força durante esse período a perspectiva segundo a qual o desenvolvimento não pode ser entendido como sinônimo de crescimento do produto.

Uma reorientação bastante significativa no debate sobre desenvolvimento, portanto, está relacionada à alteração mais profunda na noção de desenvolvimento. Com a constatação de que o processo de intensa industrialização do período anterior, além de produzir evidentes danos ambientais, não foi capaz de conduzir a uma situação considerada suficientemente igualitária e promover a desejada convergência da riqueza das nações, novas dimensões foram sendo progressivamente incorporadas à ideia de desenvolvimento, que se torna mais “fragmentada”: não bastaria mais falar naquele “desenvolvimento econômico” medido somente em termos da produção nacional (preferencialmente a produção per capita, incapaz de revelar as desigualdades distributivas) e que teria como meta diminuir as disparidades de renda entre as nações, mas de um desenvolvimento que é sustentável em sentido amplo, ou seja, baseado em uma sustentabilidade física (ecológica), econômica (de durabilidade ao longo do tempo) e social (inclusiva).

Além da incorporação das novas temáticas (especialmente da equidade e da sustentabilidade) no debate sobre desenvolvimento, é possível perceber também que a derrocada do “socialismo” real fez praticamente desaparecerem as discussões sobre o caráter histórico do capitalismo e as possibilidades de pensar o desenvolvimento para além dos marcos desse modo de produção. O resultado é que, nas formulações mais recentes, o grau de confiança no poder dos mercados e do Estado passa a ser o alvo exclusivo das disputas. Ou seja, enquanto as teorias dominantes sustentam a precedência do irrestrito funcionamento do mercado sobre o dirigismo estatal (sem ignorar a eventual necessidade do Estado, especialmente na garantia do bom funcionamento dos mercados), as teorias heterodoxas defendem uma participação mais ativa do Estado (sem negar, no entanto, a importância do mercado forte). O debate, enfim, gira em torno do grau de intervenção do Estado necessário para objetivar a sociedade projetada pelas diferentes teorias do desenvolvimento.

Conclusão

Como buscamos ressaltar ao longo da seção anterior, as teorias do desenvolvimento possuem diferenças e particularidades, tanto nos diagnósticos, quanto nas prescrições, que não podem ser ignoradas. Diante dessa caracterização geral, portanto, não podemos deixar de reconhecer que uma das dificuldades de tomar as teorias do desenvolvimento como objeto de estudo reside justamente na diversidade de formulações, seja essa diversidade determinada pelo fato de terem sido produzidas em contextos históricos muito distintos ou pelo fato de carregarem consigo orientações teóricas diversas (liberal, keynesiana, schumpeteriana etc.).

Apesar dessa diversidade, observamos que a análise do “desenvolvimento” envolve, recorrentemente, a eleição de determinados critérios e parâmetros (“empiricamente observáveis”) que permitam quantificar a condição de países ou regiões em momentos diversos de sua história. Além disso, é normalmente com base na extrapolação de um desses critérios que se afirma ou nega a superioridade de povos e/ou países com relação a outros. Por fim, o conceito de “desenvolvimento” é tratado, via de regra, como um juízo de valor subjetivo: ou seja, o “desenvolvimento” é visto como algo bom, viável e desejável (e que, portanto, deve ser promovido) e a sua ausência como algo ruim (e que, seguindo a mesma lógica, deve ser superado).

Além disso, a inspeção crítica dessas teorias é capaz de revelar que todas, sem qualquer exceção digna de nota, tomam o capitalismo como pressuposto de suas formulações. Considerando, por exemplo, a convergência em torno da redução do desenvolvimento ao “crescimento do produto”, só episodicamente rompida, fica bastante nítido o modo como as teorias do desenvolvimento projetam sobre o passado e sobre o futuro as formas de riqueza e trabalho que são específicas do capitalismo, sem jamais indagar quais são os pressupostos objetivos de um trabalho que adquire esse caráter de permanente expansão. Com isso, as teorias não apenas naturalizam processos históricos altamente complexos, não apenas se apresentam como instrumentos a serviço dessa história “naturalizada”, mas também, ao lhe fornecer inteligibilidade, comparecem objetivamente como formas de consciência indispensáveis à sua reprodução. Comparecem, portanto, como a ciência deste desenvolvimento.

Mesmo as teorias usualmente encaradas como teorias “críticas” (ou seja, aquelas capazes de reconhecer problemas associados à dinâmica capitalista, especialmente seu caráter “desumano”), acabam por admitir acriticamente os limites impostos ao exercício teórico e prático pelo objeto, em sua forma imediatamente dada. Nesse caso, percebemos que, apesar da preocupação “humanitária” assegurar um acento crítico, essas teorias hipostasiam a forma de trabalho correspondente a essa forma de sociedade e podem, na melhor das hipóteses, almejar uma “organização mais ‘humana’ do trabalho no capitalismo” (Duayer, 2010, p. 2).

Em síntese, para empregar a expressão difundida por Duayer, podemos dizer que se trata, quando muito, de uma crítica positiva do desenvolvimento capitalista. Nas palavras do autor:
A crítica positiva, como se sabe, toma o mundo tal como ele se apresenta como um dado insuperável, incontornável. E é nesse quadro de um mundo por princípio inalterável em sua estrutura e constituição essencial que a crítica positiva comparece, primeiro descrevendo o mundo – positivamente – e, segundo, em conformidade com tal descrição, prescrevendo as atitudes e práticas possíveis dos sujeitos. E a crítica positiva, é preciso não se iludir, pode ser de fato crítica à sua maneira. Pode se insurgir sinceramente contra as infâmias desse mundo incontornável. E mobiliza instrumentos teóricos sempre mais sofisticados para consertar os erros do mundo, ou para desentortar o mundo, como imaginava fazer Quixote. E arregimenta paixões, sinceras paixões, sem as quais tais instrumentos restariam inertes, para a reparação do mundo. Todavia, recorde-se, a crítica positiva e as práticas que alimenta são sempre prisioneiras desse mundo, do mundo imediato, anistórico (Duayer, 2010, p. 7).
Mas por que deveríamos recusar a noção de desenvolvimento veiculada pela ciência econômica, uma noção que conduz à identificação imediata de desenvolvimento com desenvolvimento capitalista? Em primeiro lugar, admitamos que Marx esteja correto quando procura demonstrar que o capitalismo não pode subsistir sem o exército industrial de reserva (isto é, desempregados), que o capitalismo não pode prescindir da separação dos seres humanos em classes sociais (ou seja, da desigualdade), que nós não temos como controlar, mesmo pela ação do Estado, a dinâmica capitalista (isto é, que estamos subordinados à possibilidade de crises e de um uso destrutivo da natureza). Se esse argumento faz sentido, e nós estamos presos ao desenvolvimento capitalista, então nossa única alternativa seria desenvolver uma teoria da conformação universal, e, naturalmente, da administração da calamidade.

Em segundo lugar, ainda partindo da premissa de que Marx tinha razão, se o desenvolvimento capitalista envolve por necessidade mazelas sociais e ecoló- gicas, seria impossível que, junto às mazelas, não emergissem formas de consciência em diversos níveis (cotidiano, filosófico, científico etc.) que se ocupam dessas mazelas, tanto no sentido de compreender suas causas, como no sentido de tratá-las com práticas. Se as mazelas são mazelas em algum sentido, elas reclamam remédio e as teorias que confundem desenvolvimento capitalista e desenvolvimento enquanto tal tratam de oferecê-los. Então, no fundo, essas teorias não são apenas teorias, são ideias necessárias de um mundo que produz mazelas.

No caso de Marx, bem ao contrário, percebemos que a crítica dirigida ao capitalismo pode ser mais bem caracterizada como uma crítica negativa: “crí- tica do trabalho no capitalismo, crítica do trabalho como atividade socialmente mediadora, ou seja, crítica da sociabilidade fundada no trabalho” (Ibidem).Em outras palavras, trata-se de uma crítica que reconhece, desde o início, o caráter histórico do seu objeto de estudo. De uma crítica que indaga sobre as condições históricas que fizeram emergir esse objeto. Uma crítica que procura, na organização interna do objeto, na forma como ele veio a se constituir estruturalmente, as condições do seu desenvolvimento no tempo e no espaço. Uma crítica que, por fim, expressa esse movimento causalmente determinado em leis de tendência.

Uma crítica como essa não tem qualquer compromisso a priori com o seu objeto de estudo, a sociedade capitalista, pois não o toma por antecipação como uma forma de existência insuperável, que, portanto, deve ser reparada ou amparada a qualquer custo quando sua linha evolutiva geral demonstra-se desumana (ou ameaçadora em termos ecológicos). Ao contrário, justamente por não perder de vista a transitoriedade histórica possível dessa formação social, por um lado, e por demonstrar o caráter necessário de sua desumanidade, por outro, é que pode converter o conhecimento de suas leis de tendência numa proposta de prá­ xis orientada em favor da transição concreta para uma sociedade dotada de outra dinâmica evolutiva, de outra linha de desenvolvimento interno.

Referências

DUAYER, Mario. Mercadoria e trabalho estranhado: Marx a crítica do trabalho no capitalismo. In: IV Coloquio Internacional Teoría Crítica y Marxismo Occidental: El Pensamiento Tardío de György Lukács, Facultad de Filosofía y Letras (Universidad de Buenos Aires), Revista Herramienta, Buenos Aires, 2010.
HARRIS, Laurence. Verbete “forças produtivas e relações de produção”. In: BOTTOMORE, Tom (ed). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1983.
LUKÁCS, György. As bases ontológicas do pensamento e da atividade do homem. In: COUTINHO, Carlos Nelson; NETTO, José Paulo (Org.). O jovem Marx e outros escritos de filosofia: György Lukács. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.
LUKÁCS, György. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Ciências Humanas, 1979.
MARX, Karl. Grundrisse – Manuscritos Econômicos de 1857-1858: esboços para a crítica da Economia Política. São Paulo: Boitempo, 2011.
MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política, L.I., v.1 e v.2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
MARX, Karl. Para a crítica da Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
MEDEIROS, João Leonardo. A Economia diante do horror econômico: uma crítica ontológica dos surtos de altruísmo da ciência econômica. Niterói: EDUFF, 2013.
POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx. São Paulo: Boitempo, 2014.

Notas

1. Este artigo sintetiza algumas das principais conclusões da tese de doutorado intitulada Desenvolvimento em Marx e na teoria econômica: por uma crítica negativa do desenvolvimento capitalista, apresentada ao programa de pós-graduação em Economia da UFF em agosto de 2011. Agradeço os comentários feitos na ocasião pelos membros da banca Mario Duayer, Marcelo Carcanholo, Niemeyer Almeida Filho e Paulo Nakatani. Meus agradecimentos especiais ao orientador e amigo João Leonardo Medeiros, pela orientação dedicada, trabalho árduo de revisão e incontáveis sugestões. Não poderia deixar de lembrar, no entanto, que quaisquer equívocos ou omissões são de minha inteira responsabilidade.
2. Uma síntese desta leitura, e das principais controvérsias por ela suscitada, pode ser vista em Harris (1983).
3. “Está rindo do quê? Em outras palavras, a fábula fala de ti”.



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