Introdução
No último século e meio, a obra de Karl Marx foi lida por
pesquisadores e estudiosos das mais diferentes disciplinas e em toda parte do
mundo. É difícil lembrar de algum outro pensador que tenha sido tão influente
nesse período. Grande parte dos conceitos que empregamos para pensar o mundo
contemporâneo deriva direta ou indiretamente de seus trabalhos. Suas ideias
incidiram sobre todo o espectro das ciências sociais e, até recentemente, o
marxismo, doutrina inspirada em sua obra, era reivindicado por governos que
dirigiam um terço da humanidade (Hobsbawn,2011: 311).
Se Marx foi amplamente lido, é preciso notar, por outro
lado, que a recepção de sua obra comporta numerosos problemas, distorções e,
até mesmo, paradoxos (Thomas, 1991). Em primeiro lugar, o fato de que suas
ideias tenham invadido os currículos de várias disciplinas acadêmicas não deve
nos fazer esquecer a relativa marginalização de sua influência justamente
naqueles campos em que ele teria mais a nos ensinar, a começar pela economia,
mas também a filosofia e a política. Em segundo lugar, nos países em que o nome
de Marx foi venerado e o marxismo se constituiu em ideologia oficial, a leitura
de suas obras ficou restrita a um punhado de estudiosos ligados a instituições
pouco conhecidas. Fora delas, o que prevaleceu foi o ensino de alguma versão
simplificada e monolítica das ideias de Marx, construída de modo a proporcionar
justificativas para as práticas políticas dos regimes vigentes. Finalmente,
seguidores e adversários de Marx estabeleceram uma continuidade direta e estri
ta entre suas ideias e aquelas que povoaram o marxismo em suas diferentes
versões. Desse modo, as diferenças que poderiam existir –e, certamente,
existem– entre os conceitos marxianos e as ideias marxistas foram deixadas em
segundo plano e terminaram apagadas.
Com efeito, se tomarmos por marxianos os juízos e conceitos
que podemos atribuir com segurança ao próprio Marx e por marxistas as ideias
que são consideradas pela maioria como estando de acordo com o seu legado
intelectual, então é fácil ver que nem tudo que passa por marxista é marxiano:
as teorias do imperialismo, por exemplo, pertencem muito mais a Lenin,
Hilferding ou Bukharin que ao próprio Marx. Por outro lado – e mesmo que isso
soe mais estranho ou até paradoxal–, não é menos verdade que nem tudo que é
marxiano pode ser considerado marxista, quando mais não fosse, pela simples
razão de que o marxismo se desenvolveu numa época em que o conhecimento dos escritos
de Marx era repleto de lacunas e, por isso mesmo, parcial e inadequado (Thomas,
1991: 25-26).
Foi assim, por exemplo, que a doutrina do “materialismo
histórico” – expressão jamais empregada por Marx – foi formulada nas últimas
décadas do século XIX e nas primeiras do século XX por autores como Plekhanov,
Mehring e Kautsky, muito antes que o manuscrito de A Ideologia Alemã fosse publicado.
Essa doutrina, por sua vez, influenciou decisivamente a maneira como o
manuscrito de Marx e Engels foi lido e interpretado: como um texto no qual se
encontraria, pela primeira vez, uma versão mais ou menos acabada do assim
chamado “materialismo histórico”.
Na mesma direção, o descompasso entre o marxismo e algumas
ideias de Marx permite compreender a tensão provocada pela publicação de obras
como os Manuscritos Econômico- Filosóficos
e os Grundrisse der Kritik der
politischen Ökonomie. Ao virem à luz, esses textos desafiaram as
interpretações convencionais sobre a crítica da economia política e deram
origem a longas controvérsias em que, muitas vezes, foram reduzidos à condição
de obras da juventude, anteriores à maturidade e incompatíveis com o sentido já
estabelecido da elaboração teórica de Marx que, por sua vez, não se admitia que
fosse posto em questão.
Por essa razão – pelo fato de que o marxismo se constituiu
antes mesmo que a maioria dos textos de Marx fosse conhecida – a compreensão da
recepção da obra de Marx requer que um entendimento seguro do movimento de
edição e publicação de cada um de seus textos. Por sua vez, o conhecimento
desses dois processos – da maneira como as obras de Marx vieram a público e do
modo como foram lidas – pode remover obstáculos e sugerir caminhos para uma
releitura desses textos em nova chave e para uma reinterpretação do pensamento
de Marx, agora livre das funções ideológicas que pesaram sobre ele no passado.
É o que procuramos mostrar no artigo que vai ser lido. Ele
está organizado em três partes, além dessa introdução e de uma breve conclusão.
A primeira seção discute as tentativas iniciais de edição das obras de Marx e
Engels até o final abrupto da primeira Marx-Engels-Gesamtausgabe
(MEGA). A segunda aborda brevemente a edição da Marx Engels Werke e apresenta o projeto da nova MEGA2. A terceira
seção analisa algumas repercussões da MEGA2 para a interpretação de textos consagrados
de Marx.