11/11/14

Mal-estar e fetichismo entre Marx e Freud

Pedro Dalla Bernardina Brocco   |   O artigo propõe uma tentativa de diálogo com a afirmação feita por Lacan segundo a qual Karl Marx teria sido o inventor do sintoma. Para entender a afirmação de Lacan, a aposta será a de uma leitura comparada de alguns textos de Freud e Marx, e seus respectivos comentadores, no sentido de uma aproximação entre as obras de ambos, partindo dos seguintes flancos: i) há uma ideia geral de “mal-estar” nos percursos de Marx e Freud?; ii) em que medida a noção de “fetichismo” é trabalhada na obra dos dois?

Freud é conhecido por seu texto tardio envolvendo o mal-estar na civilização, mas Marx é conhecido por seus estudos sobre o fetichismo da mercadoria. O que não se coloca num primeiro tempo, contudo, é o fato de Marx articular sua teoria tendo em vista o mal-estar presente na Europa do século XIX, em que a pobreza aparece sendo produzida artificialmente mediante a luta de classes, e que Freud também trabalha com o conceito de fetichismo, relacionando-o à perversão.

Introdução ou A primeira volta do parafuso

Lacan, ao dizer que Marx inventou o sintoma, coloca em cena a passagem do feudalismo para o mundo burguês moderno, e de como nessa passagem ocor­re uma ruptura, uma inadequação entre os direitos e deveres universais burgue­ses e a sua exceção. O fato de sempre haver uma subversão da universalidade dos direitos burgueses é o fator constitutivo da realidade burguesa moderna, e o sin­toma é “um elemento particular que subverte seu próprio fundamento universal, uma espécie que subverte seu gênero” (Žižek, 1996, p. 306). 

Para Žižek, o método marxista da crítica da ideologia já é sintomático, pois consiste em detectar um ponto de ruptura heterogêneo para um dado campo ideológico, sendo que esta ruptura mesma é algo constitutivo e necessário para que esse campo opere em sua forma fechada (ibidem). O que Žižek quer dizer com isso? Retomemos por um momento a leitura de Sobre a questão judaica: é aqui que Marx reconhece, no prefácio dos Manuscritos econômico-filosóficos, que indicou, de modo bem geral, os primeiros elementos do seu trabalho vindouro, que se inicia com os Manus­critos (Marx, 2010a, p. 20).

Em Sobre a questão judaica, escrito em 1843, publicado na primavera de 1844 no único número dos Anais franco-alemães, Marx trava uma discussão com Bruno Bauer acerca da emancipação dos judeus na Alemanha. Bauer defende a tese de que o judeu deve se emancipar, tornar-se livre, rompendo com sua “es­sência judaica”, situando a sua intervenção em uma região meramente religiosa. Marx rompe com essa formulação teológica e observa que a emancipação do judeu deve ser posta a partir da pergunta: qual é o elemento social específico a ser superado para abolir o judaísmo? Observa que “a capacidade de emancipação do judeu moderno equivale à relação do judaísmo com a emancipação do mundo moderno” (Marx, 2010b, p. 55). Essa relação, para Marx, resulta da posição es­pecial assumida pelo judaísmo naquele (e ainda em nosso) mundo escravizado. A sua virada consiste em observar o judeu secular real, o judeu cotidiano, não o judeu sabático, como faz Bauer. Aí se coloca o problema que Marx se propõe a desenvolver: qual é o fundamento secular do judaísmo? E responde à própria pergunta: a necessidade prática, o interesse próprio. E continua: qual é o culto secular do judeu? O negócio. Qual é seu deus secular? O dinheiro (ibidem, p. 56).
Agora sim! A emancipação em relação ao negócio e ao dinheiro, por­tanto, em relação ao judaísmo prático, real, seria a autoemancipação da nossa época. Uma organização da sociedade que superasse os pressupostos do negócio, portanto, a possibilidade do negócio, teria inviabilizado o judeu. Sua consciência religiosa se dissiparia como uma névoa insossa na atmosfera da vida real da sociedade. Em con­trapartida, quando o judeu reconhece que essa sua essência prática é nula e coopera para sua superação, está cooperando, a partir de seu desenvolvimento até o presente, para a emancipação humana pura e simples e se voltando contra a suprema expressão prática da autoalie­nação humana. (Ibidem).

A interpretação deste excerto que aponta para um pretenso antissemitis­mo de Marx é nada além de uma leitura ingênua e desatenta (ainda que, sim, há aqueles que enxergaram no texto um desejo de destruição total dos judeus – cf. a apresentação de Daniel Bensaïd, nesta edição, nas páginas 22 e 23).

Temos que enxergar esta formulação de Marx, ele próprio um judeu per­tencente a uma família tradicional de judeus na Alemanha, de forma muito pre­cisa: o que ele procura mostrar aqui é a explicação da existência de uma religião, uma categoria, o judeu, a partir das práticas sociais da vida burguesa concreta: o judeu seria uma espécie de exceção a um Estado sem religião, que existe enquan­to universal, igualitário, que garante liberdades. Nesse caso, a religião separada do Estado torna-se uma questão privada. Marx busca apreender a cisão entre o judeu sabático e o judeu cotidiano a partir de um pano de fundo que é o da cisão da modernidade: o desdobramento que se opera entre o Estado e a sociedade ci­vil, entre o homem e o cidadão, entre o espaço público e o espaço privado, entre o bem comum e o interesse egoísta (Bensaïd, 2010, p. 25).

O judeu cotidiano aparece, portanto, como algo sintomático, uma figura que concentra as características fundamentais do desenvolvimento do capitalis­mo na ruptura entre o bem comum instaurado pelo Estado pós-Revolução Fran­cesa e o interesse privado. Marx observa que o Estado político pleno constitui, por sua essência, a vida do gênero humano em oposição à sua vida material (ibi­dem, p. 40). O Estado institui o homem enquanto ente genérico, “membro imagi­nário de uma soberania fictícia, tendo sido privado de sua vida individual real e preenchido com uma universalidade irreal” (ibidem, p. 41) – aqui Marx antecipa intuitivamente a tríade lacaniana de Real, Simbólico e Imaginário: o Estado ins­titui um homem genérico, membro Imaginário, privado de sua vida individual Real e preenchido com uma universalidade irreal Simbólica. O Estado é um locus de primazia do nó borromeano (não sabemos o que é o Estado, algo que está entre o imaginário e o simbólico, mas que se apresenta no real dos corpos, com a burocracia, a polícia etc.).

Marx faz uma observação estritamente psicanalítica: “na sua realidade mais imediata, na sociedade burguesa, o homem é um ente profano” (ibidem). Esta observação surge logo após a comparação entre o Estado político e a reli­gião: a relação entre o Estado político e a sociedade burguesa é tão espiritualista quanto a relação entre o céu e a terra – o Estado político supera a antítese da mes­ma forma que a religião supera a limitação do mundo profano, ou seja, o Estado é forçado a reconhecer a antítese, a produzi-la e a deixar-se dominar por ela (a antítese seria, aqui, talvez, o nome para a luta de classes).

Da mesma forma, a contradição que opera entre o homem religioso e o ho­mem político é a mesma que existe entre o bourgeois e o citoyen, entre o membro da sociedade burguesa e sua pele de leão política (ibidem, p. 41).

O homem, portanto, se emancipa politicamente da religião, banindo-a do direito público para o direito privado. Ela não é mais o espírito do Estado, mas o espírito da sociedade burguesa (Marx antecipa-se a Weber), a esfera do egoísmo e essência da diferença.

O Estado moderno passa então a garantir a liberdade religiosa, assim como a liberdade tout court. A Constituição francesa de 1793 afirma que “a liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudica a nenhum outro”. A aplicação prática do direito humano à liberdade é, para Marx, equivalente ao direito hu­mano à propriedade privada. O direito à propriedade privada é, segundo Marx, ao traduzir o artigo 16 da Constituição de 1793, o direito “de desfrutar a seu bel prazer, sem levar outros em consideração, independentemente da sociedade, de seu patrimônio e dispor sobre ele, é o direito ao proveito próprio”: é, portanto, o “direito humano” de jouir (gozar)3 et de disposer à son gré de ses biens, de ses reve­nus, du fruit de son travail et de son industrie (ibidem, p. 49).

Os três significantes que embasam toda a codificação pós-revolucionária francesa, Marx os analisa, são liberté, égalité e sûreté. A liberdade foi já exposta, é a propriedade privada. A igualdade vem exposta na constituição de 1795: “a igualdade consiste em que a lei é a mesma para todos, quer ela esteja protegen­do, quer esteja punindo”. A segurança é o conceito social supremo, o conceito de polícia, segundo o qual o conjunto da sociedade só existe para garantir a cada um de seus membros a conservação de sua vida, sua pessoa, seus bens, sua proprie­dade. É aqui que aparece da forma mais paradoxal a ruptura entre o cidadão (ci­toyen) e o homem empírico (homme). Os direitos são declarações para o homem e o cidadão – duas figuras que habitam o mesmo corpo.

Mas Marx reconhecerá que tudo isso existe para a declaração do citoyen como serviçal do homme egoísta, quando vemos que a esfera em que o homem existe como ente comunitário é inferiorizada em relação àquela em que ele se comporta como “ente parcial” (ibidem, p. 50), e que o real não é o citoyen, mas o homem como bourgeois. Marx dirá que o homem real só chega a ser conhecido na forma do indivíduo egoísta, e o homem verdadeiro só na forma do citoyen abstrato.

Aqui entramos em um ponto importante – talvez possamos perceber o que Lacan chamou de invenção do sintoma na mudança do feudalismo para o mun­do moderno tal qual o conhecemos: nesta mudança, pela via da revolução polí­tica, há a incidência de dois movimentos: emancipação política e dissolução da sociedade antiga. A sociedade burguesa antiga possuía, nas palavras de Marx, um caráter político imediato, ou seja, os elementos da vida burguesa (a posse, a família, o modo de trabalho) eram elevados à condição de elementos da vida es­tatal em formas bem delimitadas: suserania, estamentos, corporações de ofício (ibidem, p. 51). Nessas formas, havia a determinação da relação de cada indiví­duo com a totalidade do Estado, sua natureza política, ou, para Marx, sua relação de separação e exclusão dos demais componentes da sociedade. Basta pensar na vida própria de uma corporação de ofício: é como se houvesse sociedades parti­culares dentro da sociedade.

A revolução política proporcionou, assim, o desmanche do conjunto de estamentos, corporações, guildas, privilégios, e outras expressões da separação entre o povo e seu sistema comunitário (ibidem, p. 52). A revolução política, nos dizeres de Marx, “superou o caráter político da sociedade burguesa”, decompôs a sociedade burguesa em seus componentes mais simples, isto é, os indivíduos, por um lado e, por outro lado, nos elementos materiais e espirituais que com­põem o teor vital, a situação burguesa desses indivíduos. “A sociedade feudal foi dissolvida em seu fundamento, no homem, só que no tipo de homem que real­mente constituía esse fundamento, no homem egoísta” (ibidem).

Esse homem é dividido entre os homens e mulheres membros da socieda­de burguesa e, nesse sentido, apolíticos, que se apresentam como seres humanos naturais dotados de direitos humanos naturais, e o homem egoísta seria o re­sultado da dissolução da sociedade feudal. O problema aqui é situado por Marx no seguinte sentido: “A revolução política decompõe a vida burguesa em seus componentes sem revolucionar esses mesmos componentes nem submetê-los à crítica” (ibidem, p. 53).

Assim, o parafuso vai sendo apertado: o trabalhador em seu ofício cotidiano, mecanizado, obrigado a vender sua força de trabalho para continuar vivendo,4 re­duzido em sua condição de trabalhador abstratamente considerado a uma merca­doria (Marx, 2010a, p. 35); o capitalista opera sob essa lógica em situação também dividida, embora possa (e se force a) gozar em sua posição privilegiada, não sabe exatamente o que está fazendo (a famosa frase de Marx em O Capital), em suma: o parafuso vai sendo apertado, também, na cabeça do monstro de Frankenstein.5
 


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