Demian Bezerra de
Melo | Com reconhecida cidadania no âmbito do
movimento socialista, o termo revisionismo é largamente utilizado em vários
contextos em debates historiográficos. Todavia, sua recente utilização em
algumas controvérsias recentes da historiografía brasileira tem lhe valido
censura dos acusados da operação revisionista, como se seus críticos estivessem
aferrados a interpretações tradicionais ou de uma “História Oficial”, além de
supostamente “desatentos” quanto aos “novos paradigmas” ou à “pesquisa
recente”. O propósito deste artigo é discutir um pouco a pertinência do
conceito, a partir de alguns debates historiográficos contemporâneos.
Como é bem conhecido, originalmente o termo apareceu no
debate aberto pela intervenção de Eduard Bernstein (1850-1932) na
socialdemocracia alemã e na Internacional Socialista já em fins do XIX e início
do XX, sendo novamente conjurado nas controvérsias posteriores do movimento
comunista internacional ao longo do XX, tornando-se praticamente sinônimo de
“traição” (Coates, 1988). Nesses casos, carregava forte carga pejorativa,
justificador de dissensos, cisões e
perseguições no interior do movimento
socialista. Só após a II Guerra Mundial é que os historiadores introduziriam o
termo no seu vocabulário, em alguns casos para afirmar o caráter renovador de
abordagens, em outros, em tom mais crítico, viradas ético-políticas informadas
pela disputa ideológica do presente; na maior parte das vezes uma mistura entre
essas duas (Traverso, 2007, pp. 95-97).
Na historiografia ocidental sobre a Revolução Russa de 1917,
por exemplo, o termo “revisionismo” refere-se a um conjunto de trabalhos que a
partir da segunda metade dos anos 1960 se opôs à interpretação
ortodoxa/anticomunista dos coldwarriors estadunidenses, e se caracterizou pela
introdução da história social (Segrillo, 2010).Entretanto, em outros contextos
hermenêuticos recentes, o termo apareceu com teor negativo, como forma de crítica
a certas abordagens, principalmente em razão de suas tendências apologéticas (e/ou
reacionárias), como acontecem nos debates sobre a Revolução Francesa e o
Nazifascismo, respectivamente ligados às proposições dos historiradores
François Furet (1927-1997) e Ernst Nolte (1923 - ).
Como pontos de referência para a forma como o conceito vem
sendo utilizado recentemente, voltemo-nos primeiro para os contextos destes
últimos debates, sobre a Revolução Francesa e sobre o Nazifascismo. Em seguida
debruçar-nos-emos sobre o breve exame de três operações revisionistas na historiografía
contemporânea, em Portugual, na Espanha e no Brasil, cujos pontos de referencia
são os distintos regimes ditatoriais que marcaram a história destes países no século
XX e cujas marcas se estendem aos embates contemporâneos.
Os revisionismos da
Revolução Francesa: anatemizando a Revolução
Desde que um
anticomunista da estirpe de François Furet “subiu ao poder” na vida
universitária francesa nos anos de 1980 e propôs que a “Revolução havia
terminado”, o fulcro da abordagem canônica sobre aquela Revolução foi posto em
xeque. O caráter burguês daque la Revolução
passaria a ser sistemáticamente refutado, no mesmo passo que as influentes
interpretações de autores como Georges Lefebvre (1874-1959) e Albert Soboul
(1914-1982) foram reduzidas a uma simplista e linear leitura “marxista-leninista”,
que alegadamente olharia 1789 como prenuncio de 1917, numa espécie de esquema
teleológico simplista que Furet caracteriza como um “catecismo revolucionário”.A
propósito, o termo “catecismo revolucionário” apareceu já no título de um
artigo seu publicado em 1971 na revista Annales, e republicado no seu livro Penser la Révolution
française, de 1978 (Paris, Gallimard), que é uma espécie de “manifesto”
desta ofensiva revisionista (Furet, 1989, pp. 99-144). Como não foi muito
difícil de perceber, o propósito do revisionismo de Furet era a desqualificação do próprio conceito de “revolução”.
Carregando em sua lapela a posição de ex-esquerdista que havia “tomado juízo”
depois de 1956,1 o historiador francés combateu em sua trincheira para
favorecer o consenso conservador que caracterizou a cena política dos anos
1980, de triunfo do neoliberalismo nos
países centrais do capitalismo (incluindo a França de Miterrand) (Cf. Anderson,
1995) e de crise ideológica da esquerda. O balanço de sua atuação parece ter
sido reconhecido, especialmente depois que o mesmo escreveu a sua própria
explicação de sua pretérita vinculação ao Partido Comunista Francês, através de
um livro “sobre a ideia de comunismo” —O passado de uma ilusão. Tal percurso levou a que, após a sua morte, o (pouco crível) Livro
Negro do Comunismo fosse dedicado a sua memória (Furet, 1995;
Courtois, 1999).
Analisando o “assalto”
a este grande objeto da história moderna, Eric Hobsbawm (1917-2012) ironizou o
fato de Furet e seus epígonos, sob o pretexto de declarar a eternidade da
sociedade liberal-burguesa no fim do século XX, atacarem o que, na verdade,
seriam as próprias interpretações burguesas para 1789, feitas por homens como
Joseph Barnave (1761-1793), Louis Adolphe Thiers (1797-1877), François Mignet
(1796-1884), Augustin Thierry (1795-1856), François Guizot (1787-1874) etc.
Como é conhecido,na verdade, foi essa literatura liberal-burguesa que trouxe à
tona, por exemplo, o próprio conceito de luta de clases que influenciou decisivamente o pensamento de Karl Marx
(1818-1883) e Friedrich Engels
(1820-1895) (Hobsbawm, 1996, p.25)2, construindo uma chave importante nas
leituras clássicas sobre a Revolução. Ademais, toda a historiografía que
podemos definir como socialista —além de Lefebvre e Soboul, Jean Jaurès (1859-1914)
e Albert Mathiez (1874-1932)— compartilhou com a historiografía liberal
oitocentista a caracterização daquela como uma revolução burguesa (Idem:
capítulo 1)3.
Entretanto não há
dúvida que a crítica de Furet, embora quisesse aparecer como “desinteressada” e
“não-ideológica”, dirigiu-se ao que chamou de “catecismo revolucionário”, “vulgata
lenino-populista” ou “jacobino-marxista”, portanto, ideologicamente contra a
esquerda. Isto posto, tal como os que queria fazer desacreditar, François Furet
também pensou 1789 a partir de 1917, só que do ponto de vista dos que queriam
exorcizar, não só o comunismo/socialismo, mas a reflexão histórica de uma das
revoluções mais paradigmáticas do mundo contemporâneo. Nesse sentido tem razão
Domenico Losurdo (2002, pp.3-35) ao apontar que este revisionismo objetiva a liquidação
da tradição revolucionária, desde 1789 até 1917.
O mesmo Losurdo chama
atenção para um “efeito colateral” resultante desta liquidação
da tradição revolucionária, que acaba produzindo “desabamentos
em série”, onde outras explicações da História Contemporâneasão
desestruturadas. De sorte que se acaba na seguinte situação: sem 1789 como uma revolução
burguesa torna-se incompreensível o Risorgimento
italiano ou mesmo a interpretação da Guerra Civil americana como
uma revolução do Norte efetivamente capitalista contra o Sul escravagista. Ao
passo que, sem 1917, passa a ser ininteligível a luta de libertação
anticolonial, a resistência antifascista, ou ainda a dos defensores da II
República na Espanha, onde é notório o papel protagonista cumprido pelos
militantes identificados com a tradição desdobrada da revolução bolchevique
(Idem, p.6-7 e passim; cf. também Hobsbawm, op. cit., p. 110)4. Furet e seus
seguidores conseguiriam penetrar também no ambiente académico anglo-saxão —o
próprio se tornaria pesquisador da Universidade de Chicago ainda nos anos 1980.
Na verdade isso foi facilitado pelo fato do próprio caminho para o revisionismo
já ter sido aberto anteriormente pelo historiador britânico Alfred Cobban
(1901-1968), que na verdade deve ser tomado como o pioneiro nessa
reinterpretação, pois já em 1964, em seu livro The
social interpretation of
the French revolution, criticou a ideia de “revolução
burguesa” a partir da “constatação” de que o evento teria “atrapalhado” o
desenvolvimento económico da França, num raciocínio calcado na esquemática
teoria da modernização.
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Sem dúvida alguma, esse
revisionismo também tem sua dívida com o livro On
Revolution (1960), de Hannah Arendt (1906-1975), onde a mesma
se recente do debate sobre o conceito de
Revolução sempre privilegiar os modelos francês e
russo, em detrimento do americano, cuja revolução (1776), segundo
a autora, teria sido “a única que não
devorou seus filhos”5. Em 1989 no mundo de fala inglesa o revisionismo figurou em
narrativas como no livro Cidadãos
de Simon Schama, um bestseller que, segundo Alex Callinicos, pintava o evento
francês como “uma explosão demoníaca de violencia irracional”, e cuja mensagem
comercial não poderia ser outra senão a de que: “as revoluções são uma Má
Coisa, sangrenta, destrutiva, irracional” (Callinicos, 1992, p. 17),
constituindo um capítulo daquilo que o historiador português Manuel Loff
descreveu como “anatemização da Revolução” (Loff, 2011, p. 13). Nada talvez
tenha sido mais significativo da trajetória hegemônica do revisionismo sobre
1789 do que o fato de sua apoteose ter se dado justamente em torno às
comemorações oficiais e à repercussão na mídia do “bicentenário indigno” (Bensaïd,
1989), quando a cena pública foi dominada por “aqueles que, em uma palavra, não
gostam da Revolução Francesa nem de sua herança”, como ironizou a propósito
Eric Hobsbawm (Op. cit., p. 9). Escrevendo algum tempo depois, Josep Fontana
chamou atenção para sua coincidência com a queda do Muro de Berlim e com a
publicação de artigo de Fukuyama sobre o “fim da História”, texto que se
notabilizou tanto pela mediocridade, como também pelo caráter apologético do
que se acreditou ser triunfo global (e definitivo) do capitalismo (Fontana,
2004, p. 413).
Tendo esses elementos
em vista, torna-se evidente o vínculo entre a historiografía revisionista de
Furet e sua “economia política”, que é o pensamento neoliberal do fim do século
XX. No âmbito das ciências humanas, essa abordagem relacionou-se de forma mais
ampla por uma (normativa) concepção do fazer política na modernidade que
busca, entre outras coisas, substituir o tema da revolução
pelo tema da democracia, separando um do outro e transformando o primeiro numa maldição
e o segundo —na chave da teleologia liberal— no futuro desejável e único possível.
Após o colapso da URSS,
ganhou enorme espaço a ideologia da superioridade incontestável da economia de
mercado sobre qualquer forma de regulação social —desde o Estado de Bem-Estar
até o planejamento de tipo soviético—, que se combinou à decretação não menos
ideológica da impossibilidade de uma mudança radical na sociedade. “There
is no alternative!”, o slogan de Margaret
Thatcher (1925-2013) nos anos 1980, tornar-se-ia a voz corrente na década
seguinte, e mudanças radicais na História seriam desacreditadas ou tomadas como
“perigosas”, ainda que a convulsão social provocada pelo colapso dos regimes
soviéticos fosse apresentada pela grande mídia como “revoluções”, só que com um sinal
invertido— “em direção ao capitalismo e a democracia”6.
Aliada à enorme
influência das teorias pós-modernas nos meios letrados e seu niilismo
conformista/catastrofista que caracterizou o ambiente intelectual daqueles anos
—onde, como pontuou Fredric Jameson, no início da década de 1990, para amplos
círculos parecia mais fácil “imaginar a completa deterioração da terra e da
natureza do que a quebra do capitalismo” (2006: 91)— a liquidação da tradição
revolucionária ganhou forte significação. O revisionismo histórico sobre uma
revolução que foi tomada por longo tempo como paradigma da mudança social
(1789) insere-se, deste modo, nesse contexto de criação dessa “grande
narrativa” do neoliberalismo sobre o “fim da história”. A propósito, os próprios
vínculos públicos entre Furet e o programa neoliberal não são difíceis de
estabelecer. Em um de seus artigos publicados na revista Débat, na edição de novembro/dezembro
de 1989,quando mirava na crise terminal vivida pela URSS, o historiador
ironizou as reformas introduzidas por Gorbachev como prova de que até no regime
oriundo de 1917 (agora) se reconhecia o “caráter insubstituível de uma economia
de mercado” (Furet, 2001, p. 119).
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