5/12/13

Revisão e revisionismo historiográfico | Os embates sobre o passado e as disputas políticas contemporâneas

Demian Bezerra de Melo  |  Com reconhecida cidadania no âmbito do movimento socialista, o termo revisionismo é largamente utilizado em vários contextos em debates historiográficos. Todavia, sua recente utilização em algumas controvérsias recentes da historiografía brasileira tem lhe valido censura dos acusados da operação revisionista, como se seus críticos estivessem aferrados a interpretações tradicionais ou de uma “História Oficial”, além de supostamente “desatentos” quanto aos “novos paradigmas” ou à “pesquisa recente”. O propósito deste artigo é discutir um pouco a pertinência do conceito, a partir de alguns debates historiográficos contemporâneos.

Como é bem conhecido, originalmente o termo apareceu no debate aberto pela intervenção de Eduard Bernstein (1850-1932) na socialdemocracia alemã e na Internacional Socialista já em fins do XIX e início do XX, sendo novamente conjurado nas controvérsias posteriores do movimento comunista internacional ao longo do XX, tornando-se praticamente sinônimo de “traição” (Coates, 1988). Nesses casos, carregava forte carga pejorativa, justificador de dissensos, cisões e
perseguições no interior do movimento socialista. Só após a II Guerra Mundial é que os historiadores introduziriam o termo no seu vocabulário, em alguns casos para afirmar o caráter renovador de abordagens, em outros, em tom mais crítico, viradas ético-políticas informadas pela disputa ideológica do presente; na maior parte das vezes uma mistura entre essas duas (Traverso, 2007, pp. 95-97).

Na historiografia ocidental sobre a Revolução Russa de 1917, por exemplo, o termo “revisionismo” refere-se a um conjunto de trabalhos que a partir da segunda metade dos anos 1960 se opôs à interpretação ortodoxa/anticomunista dos coldwarriors estadunidenses, e se caracterizou pela introdução da história social (Segrillo, 2010).Entretanto, em outros contextos hermenêuticos recentes, o termo apareceu com teor negativo, como forma de crítica a certas abordagens, principalmente em razão de suas tendências apologéticas (e/ou reacionárias), como acontecem nos debates sobre a Revolução Francesa e o Nazifascismo, respectivamente ligados às proposições dos historiradores François Furet (1927-1997) e Ernst Nolte (1923 - ).

Como pontos de referência para a forma como o conceito vem sendo utilizado recentemente, voltemo-nos primeiro para os contextos destes últimos debates, sobre a Revolução Francesa e sobre o Nazifascismo. Em seguida debruçar-nos-emos sobre o breve exame de três operações revisionistas na historiografía contemporânea, em Portugual, na Espanha e no Brasil, cujos pontos de referencia são os distintos regimes ditatoriais que marcaram a história destes países no século XX e cujas marcas se estendem aos embates contemporâneos.

Os revisionismos da Revolução Francesa: anatemizando a Revolução

Desde que um anticomunista da estirpe de François Furet “subiu ao poder” na vida universitária francesa nos anos de 1980 e propôs que a “Revolução havia terminado”, o fulcro da abordagem canônica sobre aquela Revolução foi posto em xeque. O caráter burguês daque la Revolução passaria a ser sistemáticamente refutado, no mesmo passo que as influentes interpretações de autores como Georges Lefebvre (1874-1959) e Albert Soboul (1914-1982) foram reduzidas a uma simplista e linear leitura “marxista-leninista”, que alegadamente olharia 1789 como prenuncio de 1917, numa espécie de esquema teleológico simplista que Furet caracteriza como um “catecismo revolucionário”.A propósito, o termo “catecismo revolucionário” apareceu já no título de um artigo seu publicado em 1971 na revista Annales, e republicado no seu livro Penser la Révolution française, de 1978 (Paris, Gallimard), que é uma espécie de “manifesto” desta ofensiva revisionista (Furet, 1989, pp. 99-144). Como não foi muito difícil de perceber, o propósito do revisionismo de Furet era a desqualificação do próprio conceito de “revolução”. Carregando em sua lapela a posição de ex-esquerdista que havia “tomado juízo” depois de 1956,1 o historiador francés combateu em sua trincheira para favorecer o consenso conservador que caracterizou a cena política dos anos 1980, de triunfo do neoliberalismo  nos países centrais do capitalismo (incluindo a França de Miterrand) (Cf. Anderson, 1995) e de crise ideológica da esquerda. O balanço de sua atuação parece ter sido reconhecido, especialmente depois que o mesmo escreveu a sua própria explicação de sua pretérita vinculação ao Partido Comunista Francês, através de um livro “sobre a ideia de comunismo” —O passado de uma ilusão. Tal percurso levou a que, após a sua morte, o (pouco crível) Livro Negro do Comunismo fosse dedicado a sua memória (Furet, 1995; Courtois, 1999).

Analisando o “assalto” a este grande objeto da história moderna, Eric Hobsbawm (1917-2012) ironizou o fato de Furet e seus epígonos, sob o pretexto de declarar a eternidade da sociedade liberal-burguesa no fim do século XX, atacarem o que, na verdade, seriam as próprias interpretações burguesas para 1789, feitas por homens como Joseph Barnave (1761-1793), Louis Adolphe Thiers (1797-1877), François Mignet (1796-1884), Augustin Thierry (1795-1856), François Guizot (1787-1874) etc. Como é conhecido,na verdade, foi essa literatura liberal-burguesa que trouxe à tona, por exemplo, o próprio conceito de luta de clases que influenciou decisivamente o pensamento de Karl Marx (1818-1883) e  Friedrich Engels (1820-1895) (Hobsbawm, 1996, p.25)2, construindo uma chave importante nas leituras clássicas sobre a Revolução. Ademais, toda a historiografía que podemos definir como socialista —além de Lefebvre e Soboul, Jean Jaurès (1859-1914) e Albert Mathiez (1874-1932)— compartilhou com a historiografía liberal oitocentista a caracterização daquela como uma revolução burguesa (Idem: capítulo 1)3.

Entretanto não há dúvida que a crítica de Furet, embora quisesse aparecer como “desinteressada” e “não-ideológica”, dirigiu-se ao que chamou de “catecismo revolucionário”, “vulgata lenino-populista” ou “jacobino-marxista”, portanto, ideologicamente contra a esquerda. Isto posto, tal como os que queria fazer desacreditar, François Furet também pensou 1789 a partir de 1917, só que do ponto de vista dos que queriam exorcizar, não só o comunismo/socialismo, mas a reflexão histórica de uma das revoluções mais paradigmáticas do mundo contemporâneo. Nesse sentido tem razão Domenico Losurdo (2002, pp.3-35) ao apontar que este revisionismo objetiva a liquidação da tradição revolucionária, desde 1789 até 1917.

O mesmo Losurdo chama atenção para um “efeito colateral” resultante desta liquidação da tradição revolucionária, que acaba produzindo “desabamentos em série”, onde outras explicações da História Contemporâneasão desestruturadas. De sorte que se acaba na seguinte situação: sem 1789 como uma revolução burguesa torna-se incompreensível o Risorgimento italiano ou mesmo a interpretação da Guerra Civil americana como uma revolução do Norte efetivamente capitalista contra o Sul escravagista. Ao passo que, sem 1917, passa a ser ininteligível a luta de libertação anticolonial, a resistência antifascista, ou ainda a dos defensores da II República na Espanha, onde é notório o papel protagonista cumprido pelos militantes identificados com a tradição desdobrada da revolução bolchevique (Idem, p.6-7 e passim; cf. também Hobsbawm, op. cit., p. 110)4. Furet e seus seguidores conseguiriam penetrar também no ambiente académico anglo-saxão —o próprio se tornaria pesquisador da Universidade de Chicago ainda nos anos 1980. Na verdade isso foi facilitado pelo fato do próprio caminho para o revisionismo já ter sido aberto anteriormente pelo historiador britânico Alfred Cobban (1901-1968), que na verdade deve ser tomado como o pioneiro nessa reinterpretação, pois já em 1964, em seu livro The social interpretation of the French revolution, criticou a ideia de “revolução burguesa” a partir da “constatação” de que o evento teria “atrapalhado” o desenvolvimento económico da França, num raciocínio calcado na esquemática teoria da modernização.
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Sem dúvida alguma, esse revisionismo também tem sua dívida com o livro On Revolution (1960), de Hannah Arendt (1906-1975), onde a mesma se recente do debate sobre o conceito de Revolução sempre privilegiar os modelos francês e russo, em detrimento do americano, cuja revolução (1776), segundo a autora, teria sido “a única que não devorou seus filhos”5. Em 1989 no mundo de fala inglesa o revisionismo figurou em narrativas como no livro Cidadãos de Simon Schama, um bestseller que, segundo Alex Callinicos, pintava o evento francês como “uma explosão demoníaca de violencia irracional”, e cuja mensagem comercial não poderia ser outra senão a de que: “as revoluções são uma Má Coisa, sangrenta, destrutiva, irracional” (Callinicos, 1992, p. 17), constituindo um capítulo daquilo que o historiador português Manuel Loff descreveu como “anatemização da Revolução” (Loff, 2011, p. 13). Nada talvez tenha sido mais significativo da trajetória hegemônica do revisionismo sobre 1789 do que o fato de sua apoteose ter se dado justamente em torno às comemorações oficiais e à repercussão na mídia do “bicentenário indigno” (Bensaïd, 1989), quando a cena pública foi dominada por “aqueles que, em uma palavra, não gostam da Revolução Francesa nem de sua herança”, como ironizou a propósito Eric Hobsbawm (Op. cit., p. 9). Escrevendo algum tempo depois, Josep Fontana chamou atenção para sua coincidência com a queda do Muro de Berlim e com a publicação de artigo de Fukuyama sobre o “fim da História”, texto que se notabilizou tanto pela mediocridade, como também pelo caráter apologético do que se acreditou ser triunfo global (e definitivo) do capitalismo (Fontana, 2004, p. 413).

Tendo esses elementos em vista, torna-se evidente o vínculo entre a historiografía revisionista de Furet e sua “economia política”, que é o pensamento neoliberal do fim do século XX. No âmbito das ciências humanas, essa abordagem relacionou-se de forma mais ampla por uma (normativa) concepção do fazer política na modernidade que busca, entre outras coisas, substituir o tema da revolução pelo tema da democracia, separando um do outro e transformando o primeiro numa maldição e o segundo —na chave da teleologia liberal— no futuro desejável e único possível.

Após o colapso da URSS, ganhou enorme espaço a ideologia da superioridade incontestável da economia de mercado sobre qualquer forma de regulação social —desde o Estado de Bem-Estar até o planejamento de tipo soviético—, que se combinou à decretação não menos ideológica da impossibilidade de uma mudança radical na sociedade. “There is no alternative!”, o slogan de Margaret Thatcher (1925-2013) nos anos 1980, tornar-se-ia a voz corrente na década seguinte, e mudanças radicais na História seriam desacreditadas ou tomadas como “perigosas”, ainda que a convulsão social provocada pelo colapso dos regimes soviéticos fosse apresentada pela grande mídia como “revoluções”, só que  com um sinal invertido— “em direção ao capitalismo e a democracia”6.

Aliada à enorme influência das teorias pós-modernas nos meios letrados e seu niilismo conformista/catastrofista que caracterizou o ambiente intelectual daqueles anos —onde, como pontuou Fredric Jameson, no início da década de 1990, para amplos círculos parecia mais fácil “imaginar a completa deterioração da terra e da natureza do que a quebra do capitalismo” (2006: 91)— a liquidação da tradição revolucionária ganhou forte significação. O revisionismo histórico sobre uma revolução que foi tomada por longo tempo como paradigma da mudança social (1789) insere-se, deste modo, nesse contexto de criação dessa “grande narrativa” do neoliberalismo sobre o “fim da história”. A propósito, os próprios vínculos públicos entre Furet e o programa neoliberal não são difíceis de estabelecer. Em um de seus artigos publicados na revista Débat, na edição de novembro/dezembro de 1989,quando mirava na crise terminal vivida pela URSS, o historiador ironizou as reformas introduzidas por Gorbachev como prova de que até no regime oriundo de 1917 (agora) se reconhecia o “caráter insubstituível de uma economia de mercado” (Furet, 2001, p. 119).
 


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