Karl Marx & Friedrich Engels Londres, años tardíos ✆ A.d. |
João Leonardo
Medeiros 1 | Neste ano de 2013, o Niep-Marx lança esta
primeira edição de sua Revista, uma primeira edição que, esperamos, abra ao
campo marxista, por muito tempo, mais um espaço de reflexão e difusão de
conhecimento. Considerando o declarado caráter marxista do grupo e da linha
editorial da Revista, seria realmente absurdo se não fizéssemos, nesta primeira
edição de nossa Revista, uma justa e sincera homenagem, que contribuísse para a
preservação da memória do “fantasma que
assombra a cultura contemporânea” – como disse Derrida parafraseando o Manifesto Comunista. É este o intuito da
publicação das duas cartas que se seguem, cartas estas que compõem a
relativamente escassa correspondencia dos últimos dois anos da vida de Marx.
A primeira carta, escrita em 15 de dezembro de 1881 por
Marx, é endereçada a Friedrich Adolph Sorge, o companheiro de lutas que havia
emigrado para os EUA levando consigo a luta comunista e uma seção da
Internacional Comunista. Nesta carta, Marx não apenas comunica a Sorge a norte de
Jenny, sua esposa (em dois de dezembro de 1881), como comenta sobre a
problemática difusão de O capital na Inglaterra.2 Esta carta
é a última correspondencia em que Marx reflete sobre o conteúdo de O capital.3 A partir
daí, aliás, são escassas as referências, de qualquer ordem, à obra, sendo
totalmente reduzidas a comentários sobre questões relativas ao lançamento ou relançamento
de edições – por exemplo, na última carta em que Marx escreve a Engels, em 10
de janeiro de 1883.
Isso, naturalmente, revela o estado precário de saúde e de
ânimo de Marx, ambos muito comprometidos pelo falecimento de sua esposa, em
1881, e de sua primogênita, Jenny Longuet (em 11 de janeiro de 1883). De fato, nos
últimos dois anos de vida, Marx viu-se física e mentalmente incapacitado para o
trabalho. A segunda carta que aqui publicamos foi escrita por Engels, também para
Friedrich Adolph Sorge, no dia seguinte à morte de Marx. Engels faz um relato
da condição de saúde de Marx, que confirma cruamente a sentença final do
parágrafo acima. Para além do mero registro biográfico, a carta carta é reveladora
da visão de mundo de Engels (e, certamente, de Marx). Obviamente abalado pela
morte do amigo de quatro décadas, Engels evidencia a preocupação em evitar que
o acontecimento trágico abalasse o ânimo do movimiento proletário. O zelo que
teve em vida com o amigo é, portanto, preservado, pois certamente Marx, se
pudesse, tentaria evitar que sua morte contribuísse para a desarticulação
política da classe trabalhadora. Nenhuma apresentação é, no entanto, rica o
suficiente para substituir o texto das cartas. Interrompamos, portanto, este
texto que já se alonga e passemos a elas.
English |
Marx para Friedrich Adolph Sorge em Hoboken 4
Londres, 15 de dezembro de 1881
Caro Sorge,
Tendo ouvido as notícias daqui pela boca de seu filho, você
certamente se preparou para saber da morte de minha esposa, minha inesquecível
e amada companheira (em dois de dezembro). Eu mesmo ainda não me recuperei o
suficiente para prestar-lhe minhas últimas homenagens. Na verdade, eu fui até
agora confinado em casa, mas vou para Ventnor (Ilha de Wight) na próxima
semana. Estou emergindo da minha última doença duplamente incapacitado,
emocionalmente pela morte de minha esposa, fisicamente porque fiquei com um espessamento
da pleura e com um aumento da sensibilidade dos brônquios.
Eu tenho, infelizmente, de torrar certo tempo em esquemas
para melhorar minha saúde. Outra edição do texto alemão de O capital5 torna-se
agora necessária. A mais inoportuna de que já tive ciência. Seu Henry George
tem crescentemente se revelado um impostor.
Acredito que Sorge Jr. tenha chegado em boa forma; dê-lhe
lembranças minhas.
Atenciosamente,
Marx
Os ingleses recentemente começaram a ocupar-se mais com O
capital etc. Por conseguinte, na edição de outubro passado (ou novembro, não
estou certo) da Contemporary há um artigo sobre socialismo, de John Rae. Muito
inadequado, cheio de erros, mas “justo”, como me disse um de meus amigos
ingleses anteontem. E por que justo?6 Porque John Rae não supõe que, nos
quarenta anos em que venho espalhando minhas teorias perniciosas, tenho sido
instigado por “más” intenções. “Seine Grossmut muss ich loben”.7 A justiça de
tornar-se ao menos suficientemente conhecedor do objeto de sua crítica parece
algo meio desconhecido para os escritores do filistinismo inglês.
Antes disso, no começo de junho, um pequeno livro foi
publicado por um certo Hyndan (que antes intrometeu-se em minha casa): England for all. Ele foi escrito com a
pretensão de ser uma exposé do programa da “Democratic
Federation” —uma associação recém-formada de sociedades radicais inglesas e
escocesas, meio burguesas, meio prolétaires. Os capítulos sobre Trabalho e
Capital são apenas extratos literais, ou perífrases, de O capital, mas o sujeito não cita o livro, nem seu autor, embora,
para proteger-se de comprometimentos, assinale ao final de seu prefácio: “As ideias e boa parte da matéria contida
nos Capítulos II e III devo ao trabalho de um grande pensador e autor original
etc. etc.”
Vis-à-vis comigo, o colega escreveu estúpidas cartas de
desculpas, por exemplo, [dizendo] que “os ingleses não gostam de ser ensinados
por estrangeiros”, que “meu nome era muito detestado etc.” Com tudo isso, seu
pequeno livro— na medida em que surrupia O capital— faz boa propaganda, embora
o homem seja bem limitado e muito longe de ter ao menos a paciência —a primeira
condição para aprender alguma coisa— de estudar uma matéria a fundo. Todos aqueles
amáveis escritores de classe média —para não falar dos especialistas— têm o
ímpeto de fazer dinheiro ou o nome ou capital político imediatamente a partir
de quaisquer novos pensamentos que possam ter num golpe de sorte favorável.
O colega surrupiou-me muitas noites, levando-me por aí, de
modo a aprender da maneira mais fácil possível. Por fim, foi publicado em
primeiro de dezembro passado, na revista mensal Modern Thought (preciso
enviar-lhe uma cópia), um artigo: “Líderes do Pensamento Moderno”; Nº. XXIII –
Karl Marx. Por Ernest Belfort Bax. Agora, essa é a primeira publicação inglesa
do tipo que é imbuída de um real entusiasmo pelas novas ideias em si e que se
ergue corajosamente contra o filistinismo britânico. Isso não impede que as
notas biográficas que o autor oferece a meu respeito sejam, em sua maior parte,
erradas etc. Na exposição de meus princípios econômicos e em suas traduções
(i.e., nas passagens citadas de O capital) muita coisa está errada e confusa,
mas, apesar disso tudo, a divulgação deste artigo, anunciado em letras
garrafais em cartazes no West End de Londres, produziu uma grande sensação. O
mais importante para mim é que recebi o referido número da Modern Thought ainda
em 30 de novembro, de maneira que minha querida esposa ainda pode alegrar-se
nos últimos dias de sua vida. Você sabe o interesse entusiasmado que ela
dedicava a estes asuntos
English |
Engels para Friedrich Adolph Sorge em Hoboken 8
Londres, 15 de março de 1883, 11:45p.m.
Caro Sorge,
Seu telegrama chegou ontem à noite. Obrigado, de coração! Não
foi possível mantê-lo regularmente informado sobre o estado de saúde de Marx
porque ele mudava constantemente. Aqui, em suma, estão os fatos principais.
Logo depois da morte de sua esposa, ele teve um ataque de
pleurisia, em outubro de 1881. Depois que se recuperou, ele foi mandado para
Argel em fevereiro de 1882; o tempo frio e úmido enfrentado na viagem fez com
que ele chegasse com outro ataque de pleurisia. O tempo atroz continuou, e,
quando teve uma melhora, ele foi enviado para Monte Carlo (Mônaco) para evitar
o calor do verão que se aproximava. Ele chegou novamente com um ataque de
pleurisia, mais brando desta vez. De novo, tempo abominável.
Finalmente curado, ele foi para Argenteuil, perto de Paris,
para ficar com sua filha, Mme. Longuet. Ele tomou água sulfurosa nas cercanias de
Enghien para a bronquite que o tem acometido há tanto tempo. Novamente, o tempo
estava atemorizante, mas o tratamento lhe fez algum bem. Então ele rumou para
Vevey por seis semanas e retornou em setembro, parecendo quase totalmente
recuperado. Permitiram que ele passasse o inverno na costa sul da Inglaterra. E
ele próprio estava tão cansado de perambular sem fazer nada, que outro período
de exílio no sul da Europa provavelmente o atingiria mais fortemente o moral
tanto quanto o beneficiaria fisicamente. Quando a temporada do fog começou em
Londres, ele foi enviado para a Ilha de Wight. Estava chovendo
ininterruptamente e ele pegou outro resfriado. Schorlemmer e eu estávamos
planejando visitá-lo perto do Ano Novo, quando vieram as notícias de que seria
necessário que Tussy se juntasse a ele imediatamente. Logo depois veio a morte
de Jenny, e ele retornou com outro ataque de bronquite. Depois de tudo o que
ele já tinha passado, e na sua idade, isso era perigoso. Uma série de
complicações apareceu, particularmente um abcesso no pulmão e uma perda
terrivelmente rápida de força. Apesar disso, o quadro geral da doença estava
progredindo favoravelmente, e na última sexta- -feira o clínico-chefe de
plantão, um dos mais proeminentes jovens médicos de Londres e especialmente
recomendado para ele por Edwin Ray Lankester, nos encheu de esperança por sua
recuperação. No entanto, qualquer um que já tenha examinado tecido pulmonar num
microscópio sabe quão grande é o risco de rompimento da parede de um vaso
sanguíneo num pulmão supurante.
E é por essa razão que eu dobrava a esquina da rua todas as
manhãs, nas últimas seis semanas, morto de medo de que as cortinas estivessem
arriadas. Na tarde de ontem, às 02h30min, a melhor hora para visitá-lo durante
o dia, eu encontrei a casa em lágrimas. Parecia que o fim estava próximo.
Perguntei o que havia acontecido, tentei me inteirar da questão, para oferecer
conforto. Houve uma pequena hemorragia, mas o pulmão rapidamente encharcou.
Nossa velha e boa Lenchen, que vinha cuidado dele melhor do que uma mãe cuida
de sua criança, subiu e desceu novamente. Ele estava meio-adormecido, disse
ela, que me chamou para acompanhá-la. Quando adentramos ao quarto, ele havia
adormecido para nunca mais acordar. Seu pulso e sua respiração haviam cessado.
Naqueles dois minutos ele faleceu, em paz e sem dor.
Todos os eventos que ocorrem por necessidade natural trazem
consigo seu próprio consolo, não importa quão pavorosos sejam. É este o caso. O
conhecimento médico poderia proporcionar, para ele, mais alguns anos de existencia
vegetativa, a vida de um ser impotente —o triunfo da arte clínica— não
imediatamente,mas pouco a pouco. Nosso Marx, todavia, jamais suportaria isso.
Para viver, com todos seus trabalhos inacabados diante de si, atormentado pelo
desejo de completá-los e pela incapacidade de fazê-lo, seria mil vezes mais
amargo para ele do que a morte suave que o acometeu. “A morte não é um
infortúnio para quem morre, mas para quem sobrevive”, ele costumava dizer,
citando Epicuro.
E para ver esse grande gênio definhando como uma ruína
física em nome da grande glória da medicina e da gozação dos filisteus que ele
tão frequentemente reduzia a pó quando estava no auge de sua força —não, é mil
vezes melhor deixar como está, mil vezes melhor que nós o conduzamos, depois de
amanhã, ao túmulo onde sua esposa descansa.
E após o que aconteceu antes, e aquilo que nem os médicos
sabem tanto quanto eu, não havia alternativa, na minha opinião. Que assim seja.
A humanidade encolheu em uma cabeça, a melhor cabeça de nossa era. O movimento
do proletariado segue em frente, mas se foi o ponto de apoio em que franceses,
russos, americanos e alemães espontaneamente buscavam em momentos decisivos
para receber sempre o aconselhamento indisputável e lúcido que só o gênio e o
conhecimento consumado das situações poderiam oferecer. Luzes locais e pequenos
talentos, para não falar dos impostores, têm agora carta branca. A vitória
final permanece certa, mas os desvios, os erros locais e temporários —inevitáveis
em todo caso— ocorrerão com mais frequência. Ora, devemos encarar da seguinte
forma: afinal de contas, para que estamos aqui? E estamos longe de perder a
coragem por causa disso.
Atenciosamente,
F. Engels
Notas
1 Seleção de João
Leonardo Medeiros e Marcelo Badaró Mattos. Tradução de João Leonardo Medeiros. *
Professor da Faculdade de Economia da UFF.
2 O capital só
viria a ser publicado em língua inglesa no ano de 1886 – após a morte de Marx,
portanto. O silêncio sobre a obra no país em que morava (sem contar a recepção
fria na própria Alemanha) perturbou bastante Marx, que tinha a expectativa de
que fosse recompensado, também financeiramente, mas principalmente em
reconhecimento, seu esforço hercúleo para redigi-la em meio à escassez de
recursos e atormentado por sua frágil saúde. [Nota do Tradutor]
3 Esta carta de
Marx a Sorge tem um formato estranho. O texto curto da carta, semelhante ao de um
bilhete, é sucedido por uma redação mais longa, posterior à assinatura da
carta. Em nenhum lugar onde encontramos esta carta publicada há uma explicação
para o seu formato, a não ser pela breve indicação, na MEGA, “Printed according
to the original” – impresso como no original. Podemos supor que a própria carta
de Marx a Sorge tinha uma forma pouco usual (ou seja, de que não se tratou de
um problema de edição), com um pós-escrito maior do que o texto – que poderia estar,
por exemplo, no verso do bilhete. Se for esse o caso, a carta seria apenas mais
um exemplo do caráter informal e desorganizado de muitas correspondências
enviadas por Marx a seus amigos mais chegados.
4 Karl Marx &
Frederick Engels. Collected Works, V. 46 (1880-1883). New York: International
Publishers. 1992, pp. 161-163.
5 A terceira
edição, editada por Engels apenas em 1883, depois da morte de Marx.[Nota do
Tradutor]
6 Daqui por
diante, a carta está escrita em inglês. [Nota do Tradutor]
7 “Eu tenho
apreço por sua magnanimidade”. [Nota do Tradutor]
8 Karl Marx & Frederick Engels. Collected Works, V. 46
(1880-1883). New York: International Publishers. 1992, pp. 457-458.
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